Entrevista - dement Luau





Após a entrevista a Jorge Dantas, Miguel Oliveira convida uma das musas deste autor:  a banda "dement Luau". Esta deu vida ao "rockar-te" - o seu primeiro romance publicado em 2011 - voltando a fazer uma aparição surpresa no novíssimo  "alimenta os tubarões com carne de sereia".
 Os elementos da banda aceitaram o desafio proposto, sendo o resultado desta conversa telefónica  a entrevista que em seguida é apresentada. 

Miguel Oliveira: Uma das surpresas deste novo livro são vocês. Como é estar de volta?
 
Henrique: Desde que emprestamos a nossa vida ao Jorge em 2011 que o homem estava em dívida para connosco, pelo que quando ele deixou escapar que existiria um concerto no novo livro… Não lhe demos hipótese!
 
Gil: Não se pode dizer que ele nos tenha deixado ficar num sítio agradável no final do "rockar-te", pelo que não foi difícil chantageá-lo um pouco.
 
Sapic: [lançando um palavrão] Eu disse-te que só me devias ter convidado a mim, este gajo não está preparado para o estrelato. Aqui é filosofia logo na primeira resposta, mas cá em casa quando soube que estávamos confirmados andou aos saltinhos em plena sobriedade, como uma virgem a imaginar-me sem calcinhas.
 
Henrique: Como vês foi um regresso em pleno. Pena é a gramática do Sapic ter melhorado, mas fonética continuar uma miséria: ainda cospe os [palavrão] com o timbre de uma beata com o cio. 
 
Miguel Oliveira: Vejo que se mantêm em grande forma e bem longe da plenitude da idade adulta, algo que me deixa um pouco nostálgico e até invejoso, mas que me leva justamente a começar por aqui: para além do idílio da autodestruição, em que consiste grande parte do fogo de artifício do "rockar-te", o fim da adolescência e o início da idade adulta é outro dos temas centrais do livro, colocando-vos uma imensa diversidade de problemas nos eventos relatados. Quanto do que nos é contado é verdadeiro e quanto é ficção? 
 
Gil: Acho que aquilo que todos os escritores pretendem é que nos seus livros tudo seja verdadeiro, mas nada tenha realmente acontecido.
 
Sapic: Há um certo charme irresistível na minha personagem que sempre foi invejado e que posso assegurar às nossas ouvintes é absolutamente verdadeiro.
 
Henrique: Ah sim? Também há uma certa loucura na tua personagem que por certo será absolutamente verdadeira…
 
Miguel Oliveira: Vou-vos interromper antes que comecem com os spoilers. Tinha programado começarmos pelo "rockar-te" uma vez que o vosso momento alto no "alimenta os tubarões com carne de sereia" remete precisamente para as vossas aventuras aí relatadas, mas já percebi que foi um erro. Contudo, arriscando-me a ter de interromper a entrevista tenho mesmo de vos perguntar isto: quem é afinal a Íris?
 
Gil: Não acredito que fizeste essa pergunta…

 
Henrique: Não te podemos responder a essa questão em concreto, mas temos uma boa justificação para isso: o Jorge Dantas esfolava-nos vivos. Não há um único adjectivo, uma única palavra que a descreva directamente em todo o livro.
 
Miguel Oliveira: Têm  certeza disso? Eu tenho uma nítida imagem dela na minha cabeça…
 
Sapic: Temos a certeza absoluta. Meu, ela é um mistério com uma solução diferente para cada pessoa que ler o livro, se é que me estás a entender…
 
Miguel Oliveira: Muito bem, vou ter de confirmar isso… Contudo, acredito que pelo menos parte da Íris será verdade. Têm a certeza que não me podem contar nada? Afinal donde veio a inspiração para uma personagem como ela?
 
Gil: O que é verdade é o que nós vivemos. O que o Jorge escreveu é uma versão dessa verdade. Não é possível separar uma coisa da outra, tal como não podes em culinária separar os ingredientes uns dos outros depois de teres o prato cozinhado. 

Sapic: Tens de ir à origem meu…
 
Miguel Oliveira: Confirmam-me ao menos que Íris é o título da música que apresentam integralmente no "alimenta os tubarões com carne de sereia"?
 
Henrique: Isso sim! Esperamos em breve ter um videoclip pronto.

Miguel Oliveira: O que me podem contar da vossa carreira musical? Há novo álbum no horizonte?

Henrique: Já sabes que sempre estivemos nisto mais pela arte do que pelo entretenimento. Gostamos da nossa situação actual em que ninguém nos diz o que temos ou não de fazer para vender mais, passar na rádio ou dar mais concertos.

Gil: O que é bom porque podemos experimentar tudo o que nos passar pela cabeça…

Sapic: Mas acreditando que um dia vamos poder tornar algo editável, já que não vamos ser hipócritas e dizer que o sucesso não é uma coisa boa. Claro que é, toda a gente gosta do reconhecimento e de umas [palavrão] à borla.

Miguel Oliveira: A vossa música foi sempre um pouco difícil de definir. Revêm-se na transição para a escrita que criaram com o Jorge Dantas?

Henrique: A nossa música, tal como surge por exemplo no "rockar-te", não pretende ser ouvida, mas sim ser lida, o que acaba por definir em muito o modo como é apresentada. É verdade que na literatura a métrica, o ritmo, a rima, a fonética, têm muita relevância, pois quer no teatro, quer na declamação, o texto já é escrito com o intuito de ser ouvido. Porém num romance tudo se passa do texto directamente para o pensamento do leitor, pelo que estes factores acabam por ter menos importância, ao mesmo tempo que é necessário dar uma ajuda a quem lê para que consiga invocar as suas memórias musicais e construa a nossa música na sua cabeça apenas com as pistas que lhe vamos dando. No fundo o que fizemos para o "rockar-te" foi abandonar tudo o que resulta em termos sonoros mas que acaba por se tornar muito nebuloso após a transcrição para um romance, preservando aquilo que é a nossa essência: um certo caos, uma boa dose de agressividade e uma prespectiva muito negra de situações banais do nosso dia a dia.

Sapic: Altura em eu me vi obrigado a intervir, já que muitas vezes o leitor precisa de um escapismo e nós só lhe estávamos a oferecer mais depressão. Quem é que quer ser conhecido por "uma música que é da côr da noite"?

Henrique: Foi assim que certas músicas como o "João das Colinas" e "Terça-feira" acabaram no romance, contribuindo ainda mais para os contrastes e conflitos que o livro explora, e que são precisamente aquilo que na nossa música tem maior relevância artística.

Gil: Nunca será arte se não poder correr mal, se não houver quem deteste e quem não consiga lidar com o que lhe é apresentado. Sendo a arte uma transmissão de sentimentos e emoções, é natural que por vezes não seja agradável sermos invadidos por determinados momentos que nos deixam desconfortáveis.

Sapic: Sendo, claro está, o que ganhamos em troca com esta cedência pretensamente audaz, a possibilidade de criar algo especial e único, que realmente cause impacto em quem nos ouve. Ou lê neste caso…

Henrique: Um dos pontos em que participámos no livro foi também este, o de harmonizar as múltiplas referências musicais de forma a que estas representassem as nossas próprias referências e que, tratando-se de músicas disponíveis na memória dos leitores, fosse possível invoca-las quando é necessário que nos oiçam a actuar.

Miguel Oliveira: Como foi regressar no "alimenta os tubarões com carne de sereia" sete anos depois?

Henrique: Como sabes foi em parte um interregno forçado, não sei se queres falar disso… Eu sei que é muito difícil de aceitar para muita gente, mas a nossa sociedade e o nosso sistema de justiça estão desenhados para que um culpado pague pelos seus crimes de forma justa e seja encorajado a regressar à sociedade como uma pessoa diferente. Somos humanos, cometemos erros, pelo que tal não deve significar que isso seja o fim da nossa vida. O que é comprovado desde logo pela análise às políticas de reinserção social e ao seu sucesso. Quanto pior for tratado um preso, maior é a probabilidade de definitivamente se tornar um criminoso na tentativa de sobreviver à prisão, sendo proporcionalmente menor a esperança de que saía dela uma pessoa diferente.

Sapic: Isto assumindo que é possível perdoar alguém por…

Henrique: É um tema tratado na literatura, na arte, ou mesmo no cinema. Tens o "Magnólia" sobre o que pode ou não ser perdoado; o "Closer", que é baseado numa peça homónima, sobre as consequências de alguém ser incapaz de perdoar; tantos... "Shawshank", "American History"… E claro, depois tens as obras sagradas: "Os Miseráveis", o "Crime e Castigo", ou até "A História Secreta"…

Gil: É uma pergunta que não tem resposta. Ninguém sabe o que pode ou não ser perdoado, se consegue ou não perdoar. Simplesmente não devemos partir do princípio que algo não tem perdão ou de que alguém não merecer a possibilidade de se redimir.

Sapic: Tudo se resume à culpa. Ao que decidimos fazer com ela… 

Miguel Oliveira: Quem são hoje em dia os "dement Luau"?

Gil: O que não é necessariamente mau, mas já não somos as mesmas pessoas que conheceste no "rockar-te". Por vezes passas anos a sonhar com uma coisa, mas tudo acaba por te sair de uma forma diferente. Estamos em permanente descoberta.



Nota do entrevistador
 Enquanto o mundo não volta a fazer sentido, aqui fica uma pequena amostra do som dos "dement Luau":


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