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Autor: Jorge Dantas
Edição: Jorge Dantas
Capa: Jorge Dantas
Setembro de 2011
Colectânea de Contos: 220 páginas
ebook Kindle: Amazon.com
Excerto (do conto o Peso da Cruz):
A estatura era curta, o volume generoso, a
camisa de quadrados azuis, as calças beges e os sapatos dois pequenos botes de
pele áspera, dura, rude, embrutecida com certeza por mais de mil passos. O
bigode branco e diminuto, o queixo largo e curtido do sol, as mangas
arregaçadas, os braços fortes e peludos, as mãos descomunais. Como remate uma
boina sobre a careca e uma palhinha de trigo entre os dentes, que
cuidadosamente guardou à chegada no bolso das calças.
Feito o retrato importa sublinhar que nenhum
destes traços estava na origem do desconforto que borbulhava no estômago dos
vogais designados para aquela mesa de voto. Há já quinze minutos que o homem
tomara o boletim e se dirigira à mesinha de pés altos ladeada por dois biombos
de plástico onde deveria traçar a sua cruz. Quinze minutos sumidos em
silenciosa meditação sem que da cruz sequer a primeira perna fosse
traçada.
O presidente da mesa sorria de forma
condescendente, refastelado na cadeira que equilibrava nas patas traseiras, mas
as suas três companheiras não revelavam igual estado de espírito.
Lurdes, jovem roliça de altiva desenvoltura,
tomara sobre si o comando da situação e abeirara-se do velhote oferecendo-lhe
ajuda para o anónimo problema.
Aplicou-lhe uma mão sobre o ombro, para que
ele não se assustasse, pediu permissão para o interromper e indicou-lhe
sorridente a esferográfica que presa a um cordelinho pendia voluntariosa à
frente dos seus olhos.
O homem agradeceu e respondeu-lhe que apenas
necessitava de alguns momentos para refletir, o que Lurdes, por nenhum
regulamento descobrir infringido, se viu obrigada a acatar.
A mesa de voto aplaudiu contidamente a
investida de Lurdes, acolhendo com humor o regresso da sua emissária.
Guilhermina, uma jovem alta e magra, de braços e dedos longilíneos, contornou a
resolução do velhote improvisando, entre um dos biombos e a parede da sala de
aulas em que se encontravam uma segunda mesa de voto. Esperava assim que a fila
de eleitores inquietos que se começava a formar à porta, não resolvesse
engrossar de forma incontinente os números da abstenção.
Deolinda, a terceira vogal designada, cruzou
os braços e limitou-se a rogar uma praga. Para ela a sanidade mental era algo
indispensável a qualquer eleitor válido.
Valentim Paixão, assim se chamava o
septuagenário que entupia o fluxo de votantes, sentiu atrás de si todos estes
movimentos de xadrez, mas em nada se deixou influenciar por eles. Em boa
verdade, se havia alguma vantagem em já ter contado mais Primaveras do que o
seu pai e avô juntos, era saber que toda a gente esperava que ele se
comportasse como um velhote, algo que na sua mente se assemelhava a uma massa
de carne flácida, surda, cega, trôpega, mas sobretudo de movimentos
extremamente lentos. Assumido o preconceito, aqueles quatro jovens não podiam
agora queixar-se por ele se comportar exactamente como eles esperavam que se
comportasse.
Valentim roçava as unhas pelo tampo da mesinha
inquieto, sentia o coração apressado no peito, tal como sentia a pressão
exercida pela assembleia de vogais de olhos postos em si, e o arranhar da
cadeira do presidente sobre o soalho encerado. Sentia-os, mas mais forte era o
sentimento de incerteza que o inundava. A dúvida. Quatro diferentes opções que,
depois de meses de notas e deliberação, descobria serem ainda de escolha
difícil.
Um jovem de blusão azul eléctrico aproximou-se
da mesa instalada de fresco ao lado do velhote, riscou o boletim, dobrou-o em
quatro e desapareceu tão depressa como aparecera em direcção à urna.
Valentim Paixão sentiu-se incrédulo com a
agilidade com que a juventude traçava o seu futuro. Como era possível tomarem
uma decisão tão importante com aquela descontracção? Com aquela indiferença
gritante?
Foi então que um senhor de camisa branca
luzidia, gravata e casaco impecáveis ocupou o lugar deixado vago pelo
jovem.
Valentim Paixão sentiu uma onda de orgulho
percorrer-lhe o coração. Ele, um Zé-ninguém, um cavador de batatas aos sábados,
criador de agriões nos outros dias da semana, ia votar ao lado de um doutor. O
peso dos seus votos seria igual. O seu peso na decisão do futuro do país seria
o mesmo. Valentim Paixão sentiu a alegria do sorriso que lhe percorreu os
lábios. O orgulho. Ele era importante. Contudo, quase de imediato, todos estes
sentimentos foram substituídos por um outro. A responsabilidade.
Ter a possibilidade de realizar algo tão
importante como escolher a pessoa que o representaria na condução do país
subjugou-o. Era uma responsabilidade imensa e, uma vez mais, Valentim Paixão encarou
o boletim de voto duvidoso, e uma vez mais o boletim lhe devolveu a necessidade
de uma decisão. Uma decisão importante. Uma decisão da qual dependia o futuro.
O do país. O seu. O dos seus netos.
Com a dúvida de novo instalada, a mão direita
caída e a caneta suspensa pelo cordelinho imóvel, Valentim Paixão meditou com
tanta força quanto tinha.
Balas zuniam em direcções opostas. Pingos de
chuva quebravam as enormes folhas das bananeiras criando inimigos invisíveis
por toda a parte.
Valentim Paixão rastejava de cara na lama
lutando para não entupir o cano da baioneta, girando o pescoço que suportava o
capacete em busca de um ponto de referência.
Uma emboscada. Os cabrões tinham dado com eles
a meio do almoço, com um avanço de talvez cinco segundos para com a
tempestade.
Uma última bala perdeu-se
na selva deixando Valentim Paixão a pingar chuva, lama e caca de elefante no
mais pio dos silêncios.
Uma lata de conservas boiava num charco ao
sabor da trovoada e, atrás de si, Tomé Peristáltico roçagava na lama
aproximando-se de espingarda em punho:
- Ouves alguma coisa? Onde
é que eles estão?
Valentim Paixão nunca viria a saber a quem o
seu camarada se referia, se aos atacantes invisíveis, se ao resto da companhia
que batia em retirada. Apurou o ouvido tentando discernir uma pista mas a
sinfonia da chuva a cair camuflava tudo o resto. Tinham de sair dali.
Erguendo-se cautelosamente, Valentim Paixão
varreu com o olhar o terreno circundante. Folhas, lama, troncos. A selva
tilintava num arrepio sob a cascata celeste. Não se viam homens. Não se viam
corpos.
Repentinamente uma súbita rajada de balas
esburacou o charco em que se havia tornado o solo, ainda antes de Valentim
Paixão ouvir o trovão dos seus disparos. Instintivamente mergulhou. As balas
cortaram o ar junto aos seus ouvidos, derrubando somente pingos de chuva. Rolou
sobre o seu corpo, ergueu-se e disparou cegamente na direcção que lhe pareceu
mais adequada. Corrigiu a mira e disparou novamente, cobrindo uma vasta área de
terreno enquanto recuava encolhido para o interior invisível da vegetação.
A resposta soou imprecisa, tão descrente no
atingir do objectivo como havia sido o seu ataque. Balas ziguezagueando em
direcção a coisa nenhuma. O inimigo havia-lhes perdido o rasto.
Valentim Paixão procurava Tomé Peristáltico
com o olhar, gritando-lhe mudamente para não se mexer.
- Paixão onde estás? –
perguntou Tomé em voz sumida erguendo ligeiramente o corpo. Valentim não
respondeu. Tomé elevou-se um pouco mais.
O som de um objecto pesado a cortar o ar
chegou aos ouvidos de Valentim Paixão, seguindo-se o som de uma violenta
explosão. Uma nuvem de fumo. Flocos de lama. O corpo de Tomé Peristáltico caindo
um par de metros à sua frente. Cheirava a pólvora e a carne queimada.
Valentim Paixão, ainda imóvel, silencioso,
impassível, rezou para que tivessem sido apenas uns estilhaços. Uns arranhões,
uma piada dentro de alguns anos.
Tomé Peristáltico contorcia-se, gemia,
agitando a vegetação em seu redor. Valentim Paixão não se mexeu. Eles estavam à
sua espera.
Num gesto de piedade o céu parou de se
espremer em chuva. O silêncio reinou na selva por um par de momentos até o
canto dos pássaros, a retórica dos macacos e a agonia de um homem se voltarem a
ouvir, seguidos pelo reptar de um outro em direcção ao ferido.
Cautelosamente Valentim Paixão alcançou Tomé
Peristáltico. Os músculos rígidos, o olhar penetrante, os ouvidos em alerta.
Ninguém, ninguém avançava sobre eles.
Tomé Peristáltico gemia de olhos fechados. O
seu corpo num novelo de lama, sangue e porcaria. Valentim Paixão sacudiu o
camarada tentando apurar a gravidade dos ferimentos.
- Quem nos pôs aqui? –
sussurrou Tomé Peristáltico, para logo se render ao desespero num grito – Quem
nos pôs aqui?!
Valentim Paixão recuperou a consciência do
boletim de voto entre os seus dedos. O papel áspero, os rostos sorridentes.
- Quem nos pôs aqui? –
murmurou o velhote para as caras dos candidatos.
Nenhum lhe respondeu. Teria sido algum deles a
pô-los ali? Não. Tinham passado demasiados anos. Teria sido ele, Valentim, o
culpado?
Os vogais da mesa de voto tinham deixado de
lhe prestar atenção. O corrupio de eleitores que ao seu lado defendia o seu
futuro continuava a debitar cruzes com facilidade. Aparentemente era ele o
único que se apercebia da gravidade da situação em que se encontravam. Da
dificuldade da escolha. Das suas implicações.
- Quem nos pôs aqui? –
murmurou Valentim Paixão, uma vez mais, com a voz de Tomé Peristáltico
esvaindo-se em sangue enquanto era arrastado pela lama – Quem nos pôs aqui?
Valentim Paixão puxou um lenço de pano
cuidadosamente dobrado, do bolso das calças, e secou o suor que lhe escorria
pela testa. O que fazer?
A imagem dos seus netos surgiu na sua mente. O
queixo fino de Leonor, a mais velha, aquela cara magra que já havia sido de
tantas outras mulheres na família. Os olhos sonhadores de Afonso quando era uma
criança, não, os olhos inteligentes de Afonso, agora que era um homem. O cabelo
dourado de Jeremias, o mais novo, o refilão, o rebelde, o preferido.
Valentim sorriu, mas logo o coração engoliu o
seu sorriso. Uma aflição. Um temor. Um medo insuportável.
Na sua mente um Jeremias, mais velho, mas
ainda com cara de rapaz, ainda com cara de apaixonado, o uniforme coberto de
lama, sujo de sangue, o peito lacerado, o corpo caído, inerte, o rosto lívido,
as palavras murchas pingando da boca na sua voz de criança:
- Quem me pôs aqui? Quem
me pôs aqui?
Valentim Paixão contraiu o rosto, os braços,
as pernas, o peito. À sua frente as quatro caras do boletim de voto.
- Quem me pôs aqui? –
ouviu os seus lábios proferir.
Valentim Paixão percorreu as expressões dos
candidatos com o olhar, uma, duas, três vezes. Não podia permitir. Não podia
voltar a acontecer. Não podia ser ele a escolher o assassino dos seus netos.
Tinha de impedir que alguém ousasse a repetir a façanha, tinha de impedir que
alguém ousasse infligir aos seus netos a dor que lhe havia sido infligida há
tantos anos atrás.
A voz de Tomé Peristáltico, já morto, o corpo
mole, quente, ainda a ser arrastado na lama, os lábios mudos a espirrar o fim
da vida:
- Quem nos pôs aqui?
E a voz do seu neto, aguda, infantil, a sair
do corpo de um homem, um corpo devassado:
- Quem me pôs aqui?
Como poderia ele adivinhar? Como poderia
escolher o homem certo? Como poderia evitar votar no homem errado?
Valentim Paixão voltou a limpar o suor que lhe
escorria da testa, mas nada conseguiu fazer frente ao que lhe ensopava os
sovacos e lhe colava a camisa ao corpo.
Não podia permitir. Não podia voltar a
acontecer.
Uma vez mais, Valentim Paixão soltou o
ferrolho da sua mente e magicou como nunca antes havia magicado.
Um rapazinho descalço corria por uma estrada
de terra batida. Ia chegar atrasado à escola. Era Outono e chovia.
Valentim Paixão suspendeu o exercício de
memória. Choveria sempre nos dias mais importantes da sua vida?
Subitamente o menino cresceu vários anos. Era
magro, vestia umas calças demasiado curtas que lhe deixavam os tornozelos à
mostra. Um par de meias brancas. Um par de sapatos vários números acima do
indicado.
Estava sentado num banco de pedra corrido. O
banco de pedra das traseiras da igreja. O sino chamava para a missa. Era
domingo. Era um banco onde vários rapazes já se haviam tornados homens.
Ela estava sentada ao seu lado. Cabelos
encaracolados a esvoaçar no sopro de uma ténue brisa. O sorriso. Estava sempre
a sorrir.
Era um banco onde vários rapazes já se haviam
tornado homens, mas Valentim Paixão, não sabia o que dizer, não sabia o que
fazer. Não sabia nada. A tarefa era hercúlea.
Ela balanceava os pés. Olhava para ele e
sorria. Um sorriso que lhe roubava a coragem. Subitamente a rapariga esticou o
pescoço para trás encostando-se à parede da igreja e proferiu:
- Diz-me frases bonitas
Valentim.
Estava um dia de sol.
O rapazinho corria de novo em direcção à
escola. A meio do caminho uma rapariguinha de cabelos encaracolados
juntou-se-lhe na corrida. Estavam atrasados. Ou adiantados. Talvez tudo tivesse
começado ali.
- Diz-me frases bonitas
Valentim.
O velhote suspirou. Já não existia escola.
Mais nenhum rapazinho correria por aquela estrada ao lado de uma rapariga de
cabelos encaracolados.
Talvez já não existissem sequer frases
bonitas.
Subitamente, porém, a sua mente
iluminou-se. (…)