Entrevista a Jorge Dantas por Miguel Oliveira - 21/12/2018





A propósito da publicação do romance "alimenta os tubarões com carne de sereia" Miguel Oliveira entrevista em exclusivo Jorge Dantas, abordando a sua carreia literária, bem como esta nova publicação.


Miguel Oliveira (MO): Após três colectâneas de contos, um ensaio e um romance de estreia, publicas agora em 2018 o teu sexto livro, um novo e ambicioso romance de 600 páginas intitulado "alimenta os tubarões com carne de sereia". Contudo, apesar de teres dois milhares de downloads gratuitos dos teus contos na Bubok Portugal, continuas o mesmo Zé Incógnito que eu sempre conheci: ninguém sabe que existes, ninguém leu os teus livros e estamos bem longe de por dizer que és um sucesso. O que tens a dizer em tua defesa?

Jorge Dantas (JD): Escrever livros é diferente de os vender. Eu tenho um interesse especial em os escrever, mas vende-los é uma tarefa secundária. É claro que toda a gente gosta do reconhecimento e dos benefícios comerciais que potencialmente podem advir do sucesso de que falas, mas tudo começa com a escrita e si. Comecei a planear o meu primeiro livro quando tinha seis anos de idade, mas demorei quase vinte anos a pôr esse plano em prática e a publicar o "rockar_te" o meu primeiro romance, pelo que não vão ser agora uns tantos contratempos que me vão desmotivar. Se bem que se para a próxima arranjar um entrevistador que não me mate logo na primeira pergunta, as coisas possam começar a fluir muito mais depressa. Não te parece?

MO: Pelo que dizes parece existir um certo isolamento entre ti e os teus potenciais leitores. Escrever é então para ti uma tarefa solitária?

JD: De forma nenhuma. Tem sido muito importante para mim e para a minha evolução a possibilidade de outras pessoas lerem os meus livros e de me fazerem as suas críticas sinceras. Esta foi uma das razões pelas quais comecei a publicar precocemente, numa altura em que ainda estava a experimentar e a tentar descobrir quem era enquanto escritor. Se leres um dos meus primeiros livros - por exemplo a colectânea dezafinar que é o melhor exemplo disso - vais encontrar textos escritos de formas muito diversas, com estilos, temas e estruturas que podiam pertencer a autores diferentes. Foi importante para mim esse caminho, essa espécie de adolescência literária em que tudo é novo e tudo pode ser experimentado, permitindo-me encontrar muitos dos traços com os quais me identifico e que pouco a pouco vão construindo aquilo que é a minha escrita. Este é um caminho muito mais fácil de percorrer acompanhado, pelo que terei sempre uma dívida de gratidão para quem foi lendo os meus livros e me foi dando as suas dicas. Às vezes é mesmo preciso que alguém te diga: "Desculpa lá mas isto é uma grande bosta!"  

MO: De que se trata então este teu novo livro "alimenta os tubarões com carne de sereia"? Consegues incluí-lo em algum género literário? Posso-te dizer que tentei qualifica-lo mas que a mistura entre piadas ordinárias e Filosofia me deixou um tanto ou quanto baralhado.

JD: Este livro é inspirado na crise que vivemos em 2010 e em tudo o que se lhe seguiu, contudo ao invés de tentar apresentar as minhas soluções para os problemas com que nos deparámos na altura, procurei trabalha-lo artisticamente e tratar estes problemas do ponto de vista literário. Sempre me identifiquei com a literatura do séc. XIX e com livros como a História de Duas Cidades do Charles Dickens, em que os problemas políticos e sociais são abordados através das histórias de diferentes personagens que os viveram. Destaco também o Guerra e Paz, em que para nos explicar a guerra o Lev Tolstoy é obrigado a falar da paz, e em tudo aquilo que os soldados deixavam para trás, pois só assim as suas acções podem ser compreendidas. É por isso que alguns livros para terem sentido por vezes precisam da mistura de coisas tão diferentes como as piadas ordinárias e a Filosofia. O que tentei fazer neste livro foi precisamente isso, abordar as vidas das personagens, os seus problemas pessoais, e deles partir para a análise do desastre político que esta altura da nossa história representa.

MO: Sei que apesar deste teu novo livro - "alimenta os tubarões com carne e sereia" - ser agora lançado numa edição de autor, independente e sem nenhuma editora por detrás, tentaste colmatar as possíveis lacunas que a ausência de crítica externa pudesse propiciar com uma estratégia pouco usual. Queres-me falar dela?

JD: Foi bastante simples na verdade. Pedi a onze pessoas que lessem o manuscrito e que me fizessem a sua própria revisão, com o intuito de me darem as sua sugestões e de me ajudarem num dos aspectos da edição que é mais difícil de fazer sem ajuda, que é apanhar todas as gralhas no texto. Depois disso, juntando todas as críticas fiz uma última revisão cujo resultado é a versão final que todos vós podem agora ler.

MO: Tiveste muitas surpresas com as reacções dessas pessoas à leitura do teu livro?

JD: Posso-te dizer que houve quem tenha gostado muito, quem não tenha gostado nada, quem não o tenha percebido e quem tenha desistido da leitura, o que por si só já é conjunto de reacções que dá pouca saúde a quem acabou de escrever um livro. Encarei as coisas pela prespectiva optimista que me diz que só um livro interessante pode ter tão grande gama de reacções, mas fiquei logo a saber que não é um livro para toda a gente. Sou um grande admirador do David Mitchell que é conhecido por conseguir nos seus livros um equilíbrio entre literatura e diversão, desafiando o leitor pela complexidade e temas tratados, ao mesmo tempo que lhe dá muito com que se entreter. Algo que por vezes tem resultados curiosos como o que acontece com o seu livro mais conhecido o Cloud Atlas, que apesar de satisfazer a grande maioria dos leitores, uma percentagem muito significativa não chega sequer a perceber qual o tema do livro, qual a relação entre as diferentes personagens ou o porquê da sua estrutura. Este equilíbrio entre complexidade e entretenimento é algo que me interessa ter nos meus livros e que tem uma grande importância na forma como eles são construídos, mas que no caso do "alimenta os tubarões com carne sereia" talvez esteja um pouco deslocado no sentido daquilo que me interessou artisticamente com o consequente sacrifício da simplicidade da leitura.

MO: Conseguiste incorporar todas as sugestões dos teus onze revisores?

JD: Não. Algumas das sugestões eram demasiado drásticas e comprometiam o livro em si transformando-o em algo diferente. Tentei dar resposta àqueles que eram os problemas por de trás destas sugestões de forma a preservar o que eu entendo ser a alma do livro. Dois dos problemas recorrentes eram a estrutura em si - em que a prespectiva da história alterna inúmera vezes - e o facto das personagens não terem nome próprio. São dois aspectos que têm sentido no livro e que o tornavam menos interessante caso fossem alterados, apesar da sua correcção simplificar sem dúvida a leitura. Não sou demasiado crítico de escritores como o José Rodrigues dos Santos, que são peritos em escrever um livro o mais fácil de ler possível, em que tudo é explicado e em que nenhuma ponta fica solta, e que com esta postura conseguem um imenso sucesso. Porém o meu objectivo para este livro era precisamente o contrário, torna-lo complexo, deixar grande parte da interpretação nas mãos do leitor, porque o que me interessa é levantar questões e propiciar uma discussão, por oposição a apresentar simplesmente as minhas respostas para os temas tratados.

MO: Não tens medo que a dificuldade do livro afaste potenciais leitores?

JD: Não concordo que o livro seja demasiado difícil de ler, pelo contrário, essa é sempre uma das minhas preocupações quando escrevo e o principal critério quando estou a rever o texto. Todo o livro está construído para suportar as opções tomadas. Simplesmente, não são explicadas todas as atitudes das personagens, nem todas as suas motivações e desejos, sendo o leitor tratado como alguém inteligente que é capaz de reparar nas pistas que vão sendo apresentadas e de compreender por si o que está a acontecer. O leitor tem uma participação activa no livro importante, sem a qual este não faz sentido, pelo que apesar de tal necessidade poder conduzir a fenómenos de rejeição, decidi manter a sua integridade e confiar nos meus leitores.

MO: O livro passa-se numa distopia, sendo acompanhado um único dia na vida de diversas personagens que cruzam os seus caminhos por diversas vezes. Optas por acompanhar à vez cada uma delas, escrevendo cada um dos capítulos segundo uma prespectiva própria e limitada da realidade, levando esta decisão a tal ponto que a própria escrita, e o estilo do livro em si, é diferente consoante a personagem que estamos a acompanhar. Por vezes temos a sensação que alguém chegou de rompante e alterou o texto de forma súbita, o que não existe por exemplo na literatura do séc. XIX que referiste ser uma influência, onde a escrita é habitualmente simples e tudo se encontra homogeneizado pela voz de um narrador. Queres comentar?

JD: Acho que ninguém segue uma referência de forma isolada, nem ninguém actualmente escreve como se estivéssemos no séc. XIX. O séc. XX está cheio de grandes escritores e se nos cingirmos por exemplo só aos nossos contemporâneos no nosso país, encontramos logo dois nomes incontornáveis que de uma forma ou de outra acabam por influenciar quem como eu cresceu a ler os seus livros. A cidade distópica em que a acção do livro ocorre, é uma criação em torno do seu tema central e que reflecte os problemas sobre os quais o livro incide, tal como um livro do José Saramago se destaca pela enorme dimensão narrativa que se desenvolve em torno de um tema único que interessa ao autor discutir. Por outro lado o António Lobo Antunes é muito bom em aspectos completamente diferentes, como o trato de temas muito pessoais através de uma escrita muito sofisticada e cheia de ritmo, destacando-se também pela intrusão do onírico, da memória e dos sentimentos no dia a dia das suas personagens. Ou seja, quando estamos a contar uma história podemos torce-la em qualquer direcção que beneficie a experiência do leitor, não existindo nenhuma regra de ouro que não possa ser ignorada.
 A ausência de um narrador neste livro era imperativa, assim como a sua construção através da prespectiva limitada de cada uma das personagens, sem que exista ninguém isento e omnisciente que consiga explicar o que se passa, que seja capaz de julgar as personagens e nos dizer quem são os bons e quem são os maus, ou onde está o herói e onde está o vilão. Este papel não existe no texto, porque é exactamente o papel que é atribuído ao leitor. É ele que tem acesso a toda a informação, é ele que tem de juntar as peças provenientes de cada uma das opiniões e de cada uma das prespectivas de cada personagem, e que, reunindo toda esta informação, tem a possibilidade de encontrar os heróis e os vilões, e neste processo talvez descobrir algo si próprio.
 Num livro que aborda as políticas seguidas nos últimos anos no nosso país era incontornável falar de democracia, que se trata de uma construção conjunta de muitas opiniões divergentes feita por elementos que nela participam activamente, não tendo sentido para mim tratar estes temas de uma forma fechada, em que a minha opinião é simplesmente exposta e em que não há espaço para discussão nem para a discórdia. Parece-te suficientemente comentado?

MO: Não estás  ir mal, se te esforçares um pouco mais talvez eu consiga que alguém compre esta entrevista. Mas antes que perca esta linha de pensamento, deixa-me dizer-te que algumas das minhas partes favoritas do "alimenta os tubarões com carne e sereia" são cenas que habitualmente não existem nos livros. O que é usual é que saibamos que determinada personagem foi ao teatro e que sejam descritos os acontecimentos que rodearam a peça em si e que são relevantes para a acção, contudo no teu livro acontece algo de diferente, não só temos acesso integral ao teatro, com todas as linhas da peça presentes no texto, como este nem sequer é um caso único. Temos também um jogo de futebol de rua em que todas as jogadas são descritas ao pormenor e um concerto/passagem de modelos/performance artística em que nos colocas lá bem no meio da assistência atento ao espectáculo que está a acontecer. São estas cenas também exemplos do que descreveste para a construção da narrativa em torno de um tema único?

JD: Sim, de certa forma cada uma das cenas do livro pretende retratar ou discutir um problema concreto. Aliado a isto está o facto de estarmos a acompanhar a prespectiva de uma personagem que nos precisos momentos que descreves tem a sua atenção captada pelo que está a acontecer à sua volta, o que é também sinal duma decisão minha em relação ao estilo do livro em si. Para além da influência da literatura, qualquer autor é actualmente bombardeado com um conjunto de estímulos provenientes da arte, da música, do cinema e da televisão por exemplo. No que toca à forma de contar uma história, tanto escritores como leitores estão muito habituados à forma como o cinema e a televisão as contam, pelo que transcrevo alguns desses traços para os meus livros. Em termos televisivos, se uma das personagens está numa peça de teatro nós vamos invariavelmente ver o que está a acontecer à sua volta, a menos que a acção corte para outra personagem ou derive para os seus pensamentos.
 É claro que podemos ainda falar da arte de contar mentiras, em que a qualidade de uma mentira depende da originalidade dos pormenores que nela colocarmos. Há mentiras que são demasiado boas para terem sido inventadas por alguém, levando-nos a acreditar que essa pessoa só pode mesmo ter vivido o que nos conta, caso contrário não nos conseguiria transmitir tal nível de pormenor. Isto adequa-se bem até em termos do que se sabe do funcionamento do nosso cérebro, em que somos naturalmente impelidos a decorar ou a reter na nossa imaginação os pormenores mais interessantes que nos contam por oposição a um enorme volume de informação sem interesse.
 Não há ninguém melhor a contar mentiras do que a J. K. Rowling, em que a originalidade de cada pormenor nos faz mergulhar completamente nos mundos que ela constrói. Tendo a saga Harry Potter sido publicada quando ainda era um adolescente sedento por livros de aventuras, acabaria sempre por ter alguma influência na minha escrita, influência que se revela na tentativa de emular esta arte de contar mentiras que no fundo se baseia numa enorme preparação prévia à escrita em si, de tal forma que o resultado final é uma sequência brilhante de ideias geniais linha sim, linha sim.
 Portanto, se as minhas personagens vão ao teatro, tento que a sua experiência chegue até ao leitor, o que passa por preparar a peça cuidadosamente e apresenta-la repleta de pormenores o mais originais que for possível de forma que o leitor acredite no que está a acontecer nesse momento.

MO: Quais são as tuas expectativas em relação ao "alimenta os tubarões com carne de sereia" agora que está publicado?

JD: Saiu recentemente no jornal The Guardian um artigo a propósito da entrega do Man Booker Prize deste ano, em que são discutidos os livros difíceis e a importância da existência dos prémios literários para além do sucesso comercial como aferição da qualidade de um livro.
 Uma das conclusões que é apresentada no texto é que um livro bom e fácil de ler terá sempre sucesso assim que encontre o seu público; um livro mau e fácil de ler terá por certo também sucesso, uma vez que os seus leitores procuram habitualmente o entretenimento que ele é capaz de proporcionar; quanto a um livro mau e difícil de ler, este vai merecidamente terminar os seus dias esquecido no fundo de um poço porque não tem valor que o defenda; contudo um livro bom mas difícil, se não tiver um rasgo de sorte, vai também ele terminar os seus dias esquecido no mesmo poço porque ninguém lhe dará uma oportunidade.
 Isto é, seja o "alimenta os tubarões com carne sereia" um livro bom ou um livro mau, tenha qualidade ou não tenha qualidade nenhuma - e eu sou a pior pessoa para o dizer uma vez que o escrevi e que tenho uma relação emocional com ele - vai certamente acabar os seus dias esquecido no fundo de um poço bem negro e húmido, a não ser que algo de milagroso aconteça.
 Portanto diria que agora o meu futuro está nas tuas mãos. Agradeço que te desenrasques a publicar esta entrevista.

MO: Posso-te prometer o meu empenho nessa tarefa, mas deixa-me fazer-te só uma última pergunta em jeito de bónus para os nossos leitores: O que significa o título do livro "alimenta os tubarões com carne sereia".

JD: Como já deves ter compreendido, cabe precisamente ao leitor descobrir quem são os tubarões e quem são as sereias. No fundo, é uma discussão que fica em aberto.

MO: Jorge Dantas resta-me agradecer-te a oportunidade de realizar esta entrevista e desejar-te a melhor sorte para este teu novo livro. Se tudo correr mal aqui estarei eu para te oferecer um copo.

JD: Se tudo correr mal aqui estarás tu para ler o meu sétimo e próximo livro e quiçá realizarmos uma nova entrevista. Isso sim era de amigo!

MO: Um muito obrigado a todos os que leram esta entrevista até ao fim, deixo-vos uns votos de Boas Festas tão adequados a esta quadra natalícia. Até breve.

...

Notas:
- O presente texto é baseado no registo sonoro da conversa entre Miguel Oliveira e Jorge Dantas, tendo sido realizadas algumas correcções e alguns ajustes de forma a adequa-la a este meio, ainda que tenha sido decidido preservar o registo amigável em que decorreu.
- O artigo do jornal The Guardian citado no final da conversa pode ser encontrado em: https://www.theguardian.com/books/2018/nov/10/anna-burns-milkman-difficult-novel
                    

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