Vacinas contra a Covid-19 - Uma breve história da medicina baseada na ciência, na evidência e na conveniência

 Florence Nightingale é provavelmente a enfermeira mais famosa da história da medicina, contudo o seu verdadeiro legado ultrapassa a modernização e definição desta profissão. Nascida em 1820 numa família onde a educação era muito valorizada, focou os seus estudos na área da matemática e da estatística.

Após um período em que desempenhou cargos de gestão em instituições de saúde londrinas, aceitou em 1854 liderar uma equipa de cuidados de saúde no hospital do exército britânico em Scutari (Turquia) durante a Guerra da Crimeia.

Neste tempo a teoria mais aceite na Europa para a origem das doenças era ainda a teoria dos miasmas (vapores emanados da matéria em decomposição), tendo a teoria dos germes (microrganismos como causadores das doenças) ganhado força apenas a partir do final do séc. XIX.

Apesar de, tal como os seus contemporâneos, desconhecer a verdadeira origem das doenças infecciosas, Florence Nightingale sabia da importância de manter registos, recolher dados e trabalha-los de forma objectiva. Estas competências permitiram-lhe identificar durante a sua passagem por Scutari que a maioria dos soldados internados não morria dos ferimentos que tinham motivado inicialmente o internamento, mas sim das más condições sanitárias do hospital e da inexistência de medidas preventiva de contágio entre os doentes.

Esta abordagem baseada em dados objectivos, permitiu-lhe apresentar o problema à administração britânica e conseguir autorização para implementar mudanças de fundo na organização do hospital. Como resultado a mortalidade caiu de cerca de 50% para 20%, e progressivamente os seus métodos foram implementados em todos os hospitais do exército britânico e posteriormente em todo o sistema de saúde inglês.

Archie Cochrane nasceu na Escócia em 1909, tendo estudado psicanalise e medicina em diversas cidades europeias. Os seus estudos foram porém interrompidos pela Segunda Guerra Mundial, período em que se alistou e em que foi capturado pelo exército nazi. Durante a sua vivência europeia tinha aprendido algum alemão, pelo que lhe foram restituídas enquanto prisioneiro de guerra as funções de médico.

As normas do exército alemão definiam que os prisioneiros eram alimentados apenas com cerca de 600 calorias/dia (Cochrane incluído), valor incompatível com a manutenção de um estado saudável. Archie Cochrane decidiu então conduzir um estudo científico com vinte prisioneiros com o intuito de demonstrar às chefias alemãs que a subnutrição era responsável pelo estado de edema (inchaço) e doença que os prisioneiros acabavam por desenvolver, aumentando em última análise os custos que o exército tinha com eles.

Cochrane , que viria a ficar para a história da medicina muitos anos depois pela sua defesa da "Efectividade" e "Eficiência" aplicada a todos os cuidados de saúde, sendo baseada em critérios científicos e objectivos, foi bem sucedido na apresentação dos dados recolhidos durante o seu estudo às chefias alemãs que acabaram por alterar o regime alimentar dos prisioneiros.

Em 1990 Gordon Guyatt da Universidade de McMasters no Canadá apresentou aos seus colegas o conceito de "medicina baseada na ciência", traduzindo a sua intenção de praticar e ensinar medicina de uma forma diferente. A sua proposta esbarrou com a indignação dos seus colegas perante a possibilidade da sua prática clínica não ser considerada científica, obrigando Guyatt a encontrar um novo termo - "medicina baseada na evidência" - um eufemismo que se viria a difundir, tornando-se o conceito que pretende orientar actualmente a medicina moderna.

David L. Sackett, o mentor de Gordon Guyatt, e um dos grandes defensores da "medicina baseada na evidência", encontrara já previamente problemas semelhantes, tendo passado uma parte significativa da sua carreira, explicando que a "medicina baseada na evidência" não é uma limitação artificial (ou de laboratório) da liberdade de decisão do médico, mas que se trata da integração da melhor informação científica disponível com a experiência do médico tendo em vista proporcionar a um doente em particular os melhores cuidados de saúde possíveis à luz do conhecimento científico actual.

As ideias de Gordon Guyatt e de David L. Sackett são no fundo muito semelhantes à procura de efectividade e eficiência na prática clínica de Archie Cochrane, sendo que todas se baseiam nos princípios da necessidade de recolha, registo e tratamento objectivo da informação clínica, que permitiram a Florence Nightingale revolucionar os cuidados de saúde no final do século XIX.

Posto isto, chegamos a 2021 engolidos por uma pandemia ao vírus Sars-Cov-2, mas rodeados de organizações internacionais - como a Organização Mundial de Saúde ou a Agência Europeia do Medicamento - cuja finalidade é analisar a informação científica disponível e emitir recomendações que permitam que os doentes recebam os melhores cuidados de saúde disponíveis à luz do nosso conhecimento actual.

Resultado? As cúpulas políticas optam por uma "medicina baseada na conveniência", em que as recomendações de vacinação não seguem nenhum critério científico nem nenhuma recomendação internacional (daí serem tão dispares dentro dos países europeus), chegando mesmo a ser contraditórias dependendo da altura do mês e da pressão social vividas no momento.

Poderia aceitar que Florence Nightingale não conseguisse convencer a administração britânica da necessidade de evitar o contágio entre doentes, num tempo em que a própria causa das doenças infecciosas era desconhecida; ou que Archie Cochrane não conseguisse convencer os seus captores nazis que alimentar adequadamente os prisioneiros era uma boa medida financeira; ou ainda que Gordon Guyatt não conseguisse convencer os seus colegas de que para tratar adequadamente um doente a sua opinião subjectiva não era suficiente. Agora, com esta "medicina de conveniência" de 2021, fico estupefacto.

Nota: Dos artigos consultados para a elaboração deste texto destacam-se: "Evidence-based medicine and hospital reform: Tracing origins back to Florence Nightingale" de Maya Aravind e Kevin C. Chung; "Archie Cochrane and his vision for evidence-based medicine" de Hriday M. Shah e Kevin C. Chung; "History of evidence-based medicine" de Roger L. Sur e Philipp Dahm, e "Evidence-based medicine" de David L. Sackett. 

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