Um vislumbre de luz celeste apertava-se de encontro ao céu
cinzento desenhando o contorno de uma nuvem particularmente retorcida no
preciso local onde deveria surgir a lua.
Aguardando impaciente que os automóveis se imobilizassem e o
sinal trocasse de cor, ele saltitava apoiado ora num pé ora no outro sentindo a
sola dos sapatos insegura de encontro à superfície escorregadia da calçada.
Finalmente.
Debatendo-se com os corpos cinzentos dos vultos que o
rodeavam incógnitos e apertados dentro das golas dos seus casacos oblívios, ele
atravessou a rua num serpentear apressado. Como destino uma porta de madeira
descascada pela idade que a deixara parca de tinta mas plena de misticismo.
Dois grandes candeeiros de metal antigo ladeavam-na, plácidos, inertes,
perenes, com uma aura de humidade voluptuosa envolvendo a luz das suas velas
tremelicantes.
Um último obstáculo atravessou-se no seu caminho quando a
lata fumegante do carrinho de um vendedor de vinho quente lhe cortou
momentaneamente a rota, forçando um gingar de ancas repentino e um impropério
de protesto.
Entrou.
O sopro quente da atmosfera interior de imediato o fez
sentir-se desconfortável no excesso de roupa que o envolvia. Tirou o chapéu,
abriu o casaco e desenrolou o cachecol do pescoço enquanto o enorme espelho da
entrada lhe devolvia o seu reflexo subitamente incerto em relação ao destino a
dar aos seus pertences.
Equilibrando-os num dos braços, o impiedoso anfitrião de
arestas oxidadas atirou-lhe num último relance a imagem do seu cabelo
desgrenhado e olhos cansados sulcados por pesadas olheiras, cicatrizes
violentas de algo que ele não sabia definir com precisão mas que o enredava num
sofrimento frio e afiado impossível de vencer.
Impotente, inseguro, mas plenamente consciente da firmeza
beligerante que pretendia aparentar, atravessou o salão sépia do café onde
acabara de entrar, encaminhando-se para o balcão de madeira envernizada.
Um torvelinho de madeixas negras, uns olhos grandes e
profundos da mesma cor, um vestido branco. Por pouco não chocaram quando uma
gargalhada envolta pelos seus lábios rubros a impeliu num imprudente passo à
retaguarda.
Ele susteve a marcha, ela sorriu, ele hesitou, ela não o
voltou a encarar.
- Há uma imprevisibilidade insolente neste mundo sublime que
não deixa de me espantar. Xamãs, videntes, cartomantes e aprendizes gostam de
descrever o destino como a leitura precisa da pauta esborratada de um qualquer
génio de derradeiro talento mas fraca precisão no cálculo, como se a
omnisciência que o compositor sente pela sua obra não pudesse ser corrompida
pelo ocasional devaneio e desleixo de espírito, certos de contaminar a
omnipotência da sua execução num esfrangalhar de castelo de cartas vencido pela
gravidade.
» Sirva por favor um café negro com uma pitada de sal aqui
ao meu camarada, pois se improvável era este saudoso reencontro, inabalável se
manterá a convicção de Júlio Lima de que existe no mundo a fórmula única e
perfeita de consumir cafeína.
Ele encarou por um momento o desconhecido em silêncio.
Acenou à empregada de vestes negras e placa dourada na lapela confirmando o
pedido, após o que disse:
- Peço-lhe desculpa mas não me recordo de onde nos
conhecemos.
- É costume serem atribuídas à memória toda uma panóplia de
culpas e julgamentos, contudo tal não passa do vernáculo pueril de quem procura
esquivar-se de uma saraivada de balas sibilantes. A nostalgia, essa sim, consome
almas e corações nas crepitantes chamas de lábios e sentimentos perdidos.
» Júlio Lima, tu podes ser hoje um homem casado com uma
talentosa correctora de seguros, pai de uma indigente de cabelos loiros
apaixonada por poesia, e também accionista de uma revista de viagens cujos
lucros provêm na verdade das mais-valias dos seus investimentos em bolsa,
contudo, tal como todos os homens de sucesso, que como tu sentem a necessidade
de uns últimos cincos minutos na desculpa do café antes de regressarem a casa,
um dia foste um adolescente de barba rala e indomável cuja força das paixões
desenhava sonhos de um mundo derradeiramente inspirador.
» Todos os adolescentes necessitam de um confidente na sua luta
com o mudo pela sobrevivência, pelo que eu, Gualter Osório, tive a honra de ser
o teu.
- Nunca teria adivinhado...
Ele aceitou o café, que entretanto lhe era servido numa
elegante caneca de metal, mexendo-o meticulosamente com uma vareta de madeira sem
saber como continuar a conversa.
Gualter Osório mantinha-se silencioso e sorridente, nem
desanimado nem ofendido, aparentando apenas uma excitação expectante pela sua
resposta.
- Quer mais sal no café? - perguntou a empregada,
provavelmente preocupada com as suas hesitações e com o frenesim instável da
bebida negra girando dentro da caneca.
- Não, obrigado.
Ao fundo da sala, junto aos grandes cortinados de veludo
escarlate das janelas da fachada do edifício, um par de homens de rosto suado
montava o que parecia vir a ser um pequeno palco improvisado.
Quando a empregada se afastou Gualter insistiu:
- Não me pareces tão feliz como te esperava encontrar. Como
todas as carpideiras dedicadas, os amigos têm tendência a considerar que os
seus conselhos levarão os destinatários a encontrar surtos incuráveis de
glória. Sinto-me ligeiramente defraudado pelas minhas competências
conspirativas por te encontrar sombrio e sorumbático, quando te antevia
ferranhamente agarrado a um final feliz.
- Apenas... Não é que não esteja satisfeito. Talvez às vezes
sinta que me falta algo... Não passa disso. Pautei a minha vida pela tentativa
de trabalhar para seguir os meus desejos. De não ter medo de enfrentar os
obstáculos, de assumir o que queria e de o tentar conquistar. No entanto...
- No entanto parece que o sonho inicial ficou por atingir. Ainda
assim fico contente por, apesar dos risos e das lágrimas, aquela sirigaita
titubeante que te toldava os sentimentos quando tínhamos quinze anos, ter
servido para mudares a tua vida. Se era a única forma de enveredares por esse
rumo que descreves, foi bom que a tenhas deixado fugir.
Num sufoco de coração, por certo momentaneamente fora de
ritmo, sentiu o seu pensamento invadido por uma torrente de memórias.
A alça de um sutiã branco. Dentes envolvendo a ponta de um
dedo. Aquele cheiro. Nem perfume nem aroma. Cheiro. Aqueles olhos rasgados e
aqueles lábios entreabertos e a pele sedosa e quente de uma mão que se liberta
e sacode os cabelos num desafio. Um beijo? Um beijo que nunca chegou a ser. E
os pés descalços dentro um tanque de água suja e o vestido encharcado, uma
brincadeira, uma gargalhada, um olhar preso num sorriso, e? Um beijo que nunca
chegou a ser.
- Sabes, certo indivíduo de elegante intelecto disse-me em
solene ocasião que o segredo da cura para decisões erradas residia na
possibilidade de viajar no tempo e reverter as acções cometidas.
» Confrontado com a impossibilidade metafísica de tal
viagem, o sujeito contrapôs que a falta de divulgação do método não era
imperativa para a sua suposta ausência de eficácia. Bastava portanto seguir
suas minuciosas instruções e adormecer ao som de determinada música rock para num instante despertar na
época correspondente.
Ele sorriu apesar de não conseguir discernir se existira
alguma verdade na anedota que Gualter lhe contava.
- Gostei de te ver camarada. Espero que no nosso próximo
encontro, venha a divina providência considerar pertinente tal magno
acontecimento, te encontre pleno da satisfação vernácula que deixa num trago os
homens privados tanto de penitência como melancolia.
» Se aceitares uma proposta, sugiro Over the Hills and Far Away. Mal certamente não fará.
Levemente confuso, assistiu à inusitada partida de Gualter
que em breves segundos desapareceu por entre a multidão que preenchia o café. A
preparação do palco parecia concluída, uma vez que sobre si um banco de pé alto
e uma guitarra aguardavam pacientemente a chegada do artista.
Levou o café ainda quente aos lábios sentindo o seu sabor
amargo e notou nova gargalhada da mulher de cabelos negros e vestido branco
apenas a alguns metros de si. O seu belo rosto encontrava-se subtilmente escondido
pelas sombras desenhadas pelos cadeeiros do salão.
Subitamente todas as luzes se extinguiram e as cordas
dedilhadas pelo músico, sorrindo carismaticamente já no seu lugar, compuseram
os primeiros acordes de uma familiar música rock.
Seria possível a coincidência? Era. Over the Hills and Far Away encheu o salão do café e, num momento
de inspiração, ele fechou os olhos.
...
A noite era gloriosa.
Ele espremeu-se entre os vultos de sobretudo coberto de
humidade que aguardavam autorização do sinal de trânsito e saltou agilmente
para o asfalto disputando a passadeira com os automóveis de faróis
incandescentes que a cortavam nos dois sentidos.
Atravessou.
A fachada petulante de um café pretensioso de grande porta
de madeira e candeeiros antiquados dominava aquela margem da estrada. Uma
janela rectângular permitia vislumbrar o vestíbulo onde um cavalheiro de bigode
fino ajudava uma mulher elegante de vestido branco e negros cabelos a despir o
casaco.
Ele cuspiu para o chão e apressou o passo na direcção de um
pequeno jardim parcamente iluminado a alguns metros de distância. Ao chegar ao
muro de pedras negras que delimitava a entrada girou o pescoço em todas as
direcções.
Onde estaria ele?
Ao fundo da rua, atrás de si, surgiu a chiadeira familiar do
carrinho ambulante do vendedor de vinho quente. Enquanto esperava que o homem o
alcançasse sentou-se no muro de pedras negras.
Uma menina de galochas cor-de-rosa saltitava no seu passo
curto mas veloz de forma a conseguir acompanhar o pai que a conduzia pela mão.
Ao deparar-se com uma poça de água particularmente funda suspendeu a marcha por
um momento, para repentinamente dar um salto que a fez aterrar eufórica num
imenso chapinhar.
Ele desviou o olhar para os seus pés descalços.
A pele negra da sujidade tudo escondia. Lama, lixo, sangue.
Cicatrizes violentas de algo que ele não sabia definir com precisão mas que o
enredava num sofrimento frio e afiado impossível de vencer. Faltava-lhe algo.
Algo muito mais inacessível do que um par de sapatos.
Levantou os olhos notando que um sujeito havia detido a
marcha do vendedor ambulante. Sentindo no ar o perfume irresistível das especiarias
decidiu levantar-se e alcança-los.
- Ilusionismo é o que lhe chamam os ignorantes em magia,
toldados pelas vicissitudes de sorte e infortúnio. A magia é uma arte delicada
que não se coaduna com a popularidade das bolas de cristal, pelo que os augúrios
dos nossos destinos quando abandonados nas mãos de amadores não passam de
transacções monetárias entre um inocente e um manipulador.
» Sirva por favor uma caneca com uma pitada de canela aqui
ao meu camarada pois se improvável era este saudoso reencontro, inabalável se
manterá a convicção de Júlio Lima de que existe no mundo a fórmula única e
perfeita de emborcar o seu vinho.
- Lamento camarada, mas Júlio Lima é coisa do passado. Jules
é como sou conhecido nas ruas. Permita-me ainda acrescentar que essa verborreia
me preocupa o espírito, não tanto por não fazer puto de ideia de onde me
conhece, mas mais pelo facto de esse palrear eufórico me parecer patológico e
sinal de angústias por curar.
- Apetrecho curioso é a memória, passível tanto de nos tornar
um génio como de nos matar. Falas-me de Júlio Lima, hoje um homem morto e
enterrado, tido como um pecador inconsolável pelo padre, esquecido por todos,
apelidado de Jules pelos demais.
» Esqueces-te contudo que um dia Jules foi Júlio Lima que
por sua vez foi um dia um adolescente imberbe pleno de sonhos e virgem de vigarices.
Ao seu lado costumava ser possível encontrar-me a mim, Gualter Osório, amigo e
confidente nas horas difíceis.
- É pá! Pelas cuequinhas da garoupa! Se algum dia imaginava
que Gualter Osório conseguia discursar como um trovador sem se engasgar!
Num impulso ele
atirou-se a Gualter num abraço apertado.
Libertando o desconhecido, aceitou a caneca de metal onde o
vinho fumegava o perfume da canela, começando a revolve-lo num torvelinho feroz
conduzido por uma vareta de madeira.
Afastando-se na sua companhia alguns passos do vendedor,
Gualter Osório voltou a insistir:
- Lamento confessar camarada que a nostalgia da nossa
parceria adolescente me fazia antever para ti um sucesso de esplendor muito
divergente deste com que o destino acabou por te brindar. Reconheço que uma
vida de pandega sem receios nem responsabilidades tem os seus méritos e que os
boémios espíritos entre arte, sexo e alucinações encontram por vezes a
felicidade. Contudo diria-te incompleto, imperfeito, alguém que na volúpia do
fornicote se deparou com o cabrão de um beco sem saída.
O sorriso dele desfazia-se nos seus lábios, fraquejando a
cada palavra proferida pelo desconhecido.
- Talvez... - concordou derrotado mas relutante - Lembro-me
da primeira vez que beijei uma rapariga. Tinha quinze anos e foi o maior feito
da minha vida até então. Nunca tinha feito nada tão difícil... Vivi no paraíso
durante uns dias convencido de que nada seria igual no meu futuro. E não foi.
Tudo se apresentava agora tão fácil e irrelevante que deixei de me esforçar
para fazer o que quer que fosse. Limitava-me a esperar que a vida me trouxesse
o que queria. Claro que, quando uns anos mais tarde a oportunidade de uma
carreira de sucesso surgiu, declinei tal eram o esforço e o sacrifício
implicados...
- Sabes, certo indivíduo de garboso timbre disse-me em
pertinente festividade que a arte da cura para estúpidas decisões residia na
possibilidade de viajar no tempo e reverter as acções cometidas.
» Confrontado com a vertente anedótica de tal proposta, o
sujeito contrapôs que a falta de crença dos que ignoram a ciência não era
imperativa para a sua suposta ausência de eficácia. Bastava portanto seguir
suas preciosas directrizes e atravessar uma rua de olhos fechados ao som de
determinada música rock para num
instante cair na época correspondente.
» Se aceitares uma proposta, sugiro Fairytale of New York. Mal certamente não fará.
Gualter Osório despediu-se e começou a descer a rua
desaparecendo num ápice entre a multidão.
Ainda duvidoso em relação à percentagem de escárnio presente
no discurso do desconhecido, ele sentiu o seu espírito assaltado por uma maré
de recordações.
Uma lágrima. Outra. E outra. Ele estava sentado refastelado
no sofá florido com os pés sobre uma mesinha de apoio coberta de lixo. Ela
gritava girando à sua volta numa fúria incontida. Ele ria-se. Às gargalhadas.
Mas encarou-a uma vez mais e a dor nos olhos dela dilacerou-lhe o coração,
lágrimas, ranho, sangue e um par de palavras cuspidas que lhe diziam aos gritos
que nunca mais a tornaria a ver e uma correria na direcção da saída e um braço
preso pela ponta dos dedos que se solta e se liberta e desaparece por uma porta
que se fecha com estrondo. Nunca mais a tornaria a ver.
Subitamente o vendedor ambulante passou novamente por si e o
som de um piano dedilhado surgiu vindo de um pequeno rádio de plástico azul,
compondo os primeiros acordes de uma familiar música rock.
Seria possível a coincidência? Era. Fairytale of New York ecoou na noite escura e, num momento de
inspiração, ele fechou os olhos e começou a atravessar a rua.
...
A escova do limpa-para-brisas deslizava suavemente sobre o
vidro, salpicado pela humidade da noite, desligando-se momentaneamente quando a
limusina negra susteve a sua marcha no semáforo de uma passadeira.
Limpando a janela embaciada com as costas da luva de pele
negra, espreitou a avenida repleta de vultos escondidos do clima sob os seus
casacos de tons escuros. A frondosa porta de madeira secular do café abriu-se
para dar entrada a um homem de bigode e uma mulher de cabelos negros,
suavemente iluminados pelos candelabros ferrugentos que a ladeavam.
Fez sinal ao motorista para contornar o quarteirão e
estacionar na viela das traseiras. Queria a todo o custo evitar olhares
indiscretos.
O sinal passou a verde e o motorista fez a limusina deslizar
suavemente sobre o asfalto, saindo da avenida junto a um jardim sombrio rodeado
por um muro de pedras negras. Uma rapariguinha de galochas cor-de-rosa passeava
de mão dada com o pai, procurando atravessar a direito todas as poças de água
com que se deparava no passeio.
Estacionaram numa ruela estreita e suja, em frente a um
portão moderno de vidro e metal. O porteiro, um homem de gabardina negra e
cabelo grisalho, não tardou a abrir-lhe a porta da limusina protegendo-o da
instável meteorologia com um guarda-chuva de punho dourado.
Ele agradeceu e seguiu o porteiro através do portão,
convidando-o a entrar num alpendre luxuoso, decorado com mármore de diversos
tons, que permitia o acesso a um único elevador. Mal ele se aproximou a porta
abriu-se.
Subiu a bordo.
Um estranho sentimento apoderou-se de si, enquanto retirava
o chapéu e o cachecol, despindo o sobretudo enquanto um espelho de rebites
dourados lhe devolvia a sua imagem de cabelos desgrenhados e olhos cansados
sulcados por pesadas olheiras. Era como se já tivesse vivido aquele exacto
momento no passado.
Curioso...
Terminando a sua viagem ascendente, o elevador susteve a
marcha abrindo as suas portas. Um átrio de mármore branco e azul abria-se para
uma estonteante parede de vidro que revelava as luzes da cidade mais de trinta
andares abaixo de si.
Uma rapariga jovem de minissaia ousada e exuberante
maquiagem recolheu os seus pertences e convidou-o a entrar numa segunda sala,
onde funcionava um bar panorâmico, encaminhando-o para o elegante balcão de
mármore negro.
- Inexplicável mundo é este em que coincidências e caprichos
do destino...
Ele levantou a mão detendo o desconhecido que se lhe dirigia
em forte exuberância antes de lhe atirar:
- Gostaria de não ser incomodado, caso tal esteja ao seu
alcance.
O desconhecido respondeu-lhe com uma vénia educada após o
que se dirigiu à empregada do bar, uma mulher formosa parcamente envolvida por
um corpete de decote irresistível:
- Sirva por favor um cálice de Porto com uma pitada de licor
de carvalho aqui ao meu camarada pois se improvável era este saudoso
reencontro, inabalável se manterá a convicção de Júlio Lima de que existe no
mundo a fórmula única e perfeita de pedir desculpas.
Surpreendido, ele voltou a encarar o desconhecido:
- Conseguiu a minha atenção. O que deseja?
O homem fez-lhe sinal para que aguardasse um pouco, enquanto
a sua bebida era preparada numa coreografia de movimentos sensuais. Mal o
cálice foi servido, o desconhecido convidou-o a afastarem-se um pouco na
direcção da parede de vidro onde a cidade surgia desfocada pelas inúmeras
gotículas de humidade.
- Quando num embate reencontramos um passado recalcado sobre
a força de mil-passos, uma luta entre nostalgia e repulsa domina habitualmente
o nosso espírito, contudo caso...
Ele remexia a bebida furiosamente com uma vareta de vidro,
porém, frustrado pelos intermináveis rodeios do desconhecido, pousou-a ainda em
torvelinho sobre uma mesinha de marfim e levou a mão ao interior do blazer retirando dissimuladamente um
revólver negro do seu interior que encostou ao abdómen do desconhecido.
- O meu tempo não é interminável. Vai-me dizer o que
pretende ou prefere que abrevie a sua existência?
Um sorriso.
O desconhecido não parecia minimamente intimidado pela sua
ameaça, o que ele rapidamente concluiu tratar-se do aspecto mais preocupante de
toda aquela disparatada conversa.
- O meu nome é Gualter Osório, um pretérito amigo. O passado
pode parecer-nos ameaçador quando bafejado pela traição ou exposição de íntimos
segredos, no entanto garanto-lhe que não represento para si qualquer ameaça,
apesar de ter pleno conhecimento tanto das suas rotineiras madrugadas nesta
torre como das ilícitas actividades com que financia a sua vida de sultão.
» Até os homens mais duros tiveram um dia em que precisaram
de um amigo, pelo que mesmo que tenha dinamitado da sua memória a nossa
adolescência, acredite que há sentimentos que nunca se apagam por completo.
Ele franziu o rosto pressionando o cano do revólver com
maior violência e respondeu:
- Pareço-te um homem com sentimentos?
Um sorriso. De novo.
- Pode pretender aparentar ser um infalível cavalheiro, mas
ainda assim, tal como todos os homens na sua posição sabem, simplesmente há
coisas que não se conseguem comprar por muito funda que seja a nossa bolsa.
» Pensa que não sei porque é que todas as mulheres com que se
encontras neste local se assemelham entre si? Pensa que não sei que todas elas
são a imagem decalcada de uma certa sirigaita de espírito irrequieto e volúvel,
mas de contagiante energia frenética à qual o mais pio dos homens não
conseguiria resistir?
» Considera possível que não saiba porque não tem mulher,
nem filhos, nem amigos, família ou qualquer alma que se aproxime de si a menos
de um braço? Considera que não sei que essa vida de solidão que encobre se
esgota num paraíso perdido há mais de trinta anos?
» Pois se é assim que pensa, lamento dizer-lhe que está
liminarmente enganado.
Ele baixou a arma lentamente.
A dor.
Talvez ao invés de um homem sem sentimentos, fosse na
verdade um homem de sentimento único.
- Por vezes... - começou - Penso que há coisas que uma vez
perdidas nos marcam para sempre. Talvez... Talvez o melhor fosse nunca terem
acontecido.
- Sabe, certo
indivíduo de informado conselho disse-me em honrada data que os procedimentos
para a cura de decisões imponderadas residia na possibilidade de viajar no
tempo e reverter as acções cometidas.
» Confrontado com a vertente de ficção de tal proposta, o
sujeito contrapôs que a falta de indícios mensuráveis não era imperativa para a
sua suposta ausência de validade. Bastava portanto seguir suas preciosas
directrizes e trautear de olhos fechados determinada música rock para num instante surgir na época
correspondente.
» Se aceitar uma proposta, sugiro Space Oddity. Mal certamente não fará.
Gualter Osório dedicou-lhe nova vénia e afastou-se mudo em
passo decidido desaparecendo por entre uma pequena multidão de rapazes
engravatados que acabava de chegar.
Tentou sentir alguma coisa.
Nada.
Sentia-se vazio. Sem alegrias, sem recordações, sem memória.
Sentia-se oco. Até que
Uns olhos rasgados. Uns lábios entreabertos. A pele sedosa e
quente de uma mão que se liberta e sacode os cabelos num desafio.
Uma dor insuportável no peito atirou-o ao chão. Não
conseguia respirar. Ia morrer.
Os jovens que tinham acabado de entrar desfizeram-se em
gargalhadas insultuosas perante o seu desfalecimento súbito, contudo a rapariga
do bar abandonou o balcão em passos leves e ajudou-o a levar-se.
- Está tudo bem consigo?
- Estou óptimo, obrigado. Já passou...
Subitamente o som de uma guitarra dedilhado surgiu vindo do
corpete da rapariga, compondo os primeiros acordes de uma familiar música rock.
- Desculpe, o meu telefone...
Seria possível a coincidência? Era. Space Oddity ecoou nas paredes de mármore enchendo o salão e, num
momento de inspiração, ele fechou os olhos e começou a trautear levemente.
...
Uma noite húmida.
Um estranho sentimento de familiaridade apoderou-se dele
enquanto encolhido dentro do casaco aguardava que o sinal ficasse verde para os
peões.
Algo de estranho se passava naquela noite.
Quando o sinal mudou saltou para a passadeira, contudo um
pressentimento levou a que hesitasse e suspende-se a travessia causando sonoro transtorno
nos vultos que seguiam atrás de si.
Repentinamente porém, o carrinho ambulante de um vendedor de
vinho quente atravessou a passadeira, só não o atropelando por ele se encontrar
imóvel um passo atrás do seu trajecto.
Retomou a marcha na direcção da imponente porta de madeira
do café do outro lado da rua, contudo não conseguia libertar-se daquela
sensação de desconforto.
O que estaria a acontecer? Seria apenas imaginação sua?
Cruzou a pesada porta de madeira entrando num vestíbulo
dominado por um imponente espelho de rebordos oxidados.
Tirou o chapéu, o cachecol e o casaco, no entanto o seu
reflexo assustado só contribuiu para adensar as suas inseguranças. Sentia-se a
reviver a sua própria vida, por muito pouco sentido que tal afirmação pudesse
ter.
Atravessou o salão do café na direcção do balcão de madeira
envernizada, contudo, uma vez mais deteve num impulso a sua marcha por um breve
momento, evitando colidir com uma mulher muito bonita de cabelos negros e
vestido branco que perdida numa sonora gargalhada recuou dois imprudentes
passos cortando-lhe o caminho num repelão.
Perdeu alguns segundos a seguir a mulher com olhar em busca
de respostas, contudo ela nunca pareceu reparar realmente na sua existência.
Ao chegar ao balcão, sem a surpresa que descansaria os seus
temores, um desconhecido encarou-o entusiasmado e declarou:
- Há uma imprevisibilidade insolente neste mundo sublime que
não deixa de me espantar...
- Não me venha falar de imprevisibilidade! - atirou ao
desconhecido cortando-lhe a palavra - Tenho a certeza de que nunca nos
encontrámos previamente, mas creio que está prestes a apresentar-se como
Gualter Osório e a oferecer-me um café negro com uma pitada de sal.
» Pode não fazer qualquer sentido, mas sei no meu íntimo que
nem você é na verdade o Gualter, nem estamos a ter esta conversa pela primeira
vez.
- Tem razão, devo-lhe um pedido de desculpas. A verdade é
que estas nossas conversas não têm tido os desfechos que eu antecipara.
- Estas? Quantas vezes já nos encontrámos antes?
- Acredito sinceramente que é melhor não lhe responder
directamente, mas acredite que foram as suficientes.
- As suficientes!? O que é que isso significa?
- Nos nossos prévios encontros propus-lhe regressar ao
passado e alterar decisões que tomou na altura. Sendo mais específico, as
propostas destinavam-se a alterar momentos importantes da sua vida, directa ou
indirectamente relacionados com uma certa rapariga de olhos rasgados que marcou
a sua adolescência.
- Como se atreve a interferir com alguém desta forma
descarada!? Como espera que eu seja capaz de alterar decisões com mais trinta
anos? Quem é você e qual o seu interesse em tudo isto?
- Nunca o forcei a fazer nada, você seguiu sempre o seu julgamento
e tomou as suas próprias decisões.
- E ela? Por acaso andou também a incomoda-la a ela? Você
quer-me matar de vergonha!?
- Na verdade encontrei-me com ela diversas vezes e apresentei-lhe
as mesmas propostas.
A fúria que sentia foi dominada de súbito pela curiosidade.
- Propôs-lhe voltar atrás no tempo e alterar decisões
passadas relacionadas comigo?
- Sim.
- Mas... O que é que ela respondeu?
- Ela rejeitou essa possibilidade. Repetidamente. De todas
as vezes que falámos. Uma mulher consistente diga-se...
Naquele momento Júlio Lima compreendeu que tudo aquilo não
passava de uma brincadeira de mau gosto. Virou as costas ao desconhecido e
abandonou o café decidido a procurar o rasto de Gualter Osório e de o inquirir
sobre o direito que tinha em andar a espalhar os seus segredos.
Como era possível existir alguém tão cruel como aquele homem
desconhecido?
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