Uma carta contra a guerra das Ordens

 

A batalha que neste momento se está a desenhar entre governo e ordens profissionais, apresenta um ponto-chave que merece ser discutido.

Um primeiro problema é o facto do mérito que atribuímos a alguém ser sempre subjectivo - se gostamos de futebol e se esse é um assunto que dominamos, somos capazes de reconhecer o mérito de um jogador talentoso ou de um treinador sagaz e como tal aceitar que as suas transferências movimentem milhões ou que os seus ordenados sejam estratosféricos. Como compreendemos o tema somos capazes de reconhecer mérito em quem o merece.

Contudo, se passamos para uma área que nos é estranha e com a qual não contactamos regularmente, a nossa capacidade de reconhecer o mérito fica comprometida - tal contribui para que seja difícil aceitar que um médico ou um advogado, um juiz ou um engenheiro tenham determinada regalia ou benefício. Como não os compreendemos e não lhes reconhecemos mérito, esses prémios tornam-se inexplicáveis.

A percepção do valor do trabalho de alguém não é importante apenas para pessoas individuais, as empresas investem muitos dos seus recursos a construir uma imagem positiva das suas marcas e a apresenta-las ao público sobre uma perspectiva positiva - veja-se o exemplo das gasolineiras e das suas campanhas de promoção ambiental.

Quando não exista esta divulgação, a percepção que o público tem de uma classe profissional, como acontece com os médicos, depende do que é noticiado na comunicação social - que na sua maioria consiste nos episódios negativos desses profissionais, já que são a tragédia, o escanda-lo e as injustiças que são mais apelativas para o público. Episódios de negligência médica pontuais são muito mais conhecidos do que, por exemplo, o facto de o Serviço Nacional de Saúde providenciar a qualquer pessoa, qualquer que seja a sua doença, todos os cuidados de saúde existentes no planeta que tenham prova científica da sua eficácia e benefício.

Um segundo problema, é a confusão que muitas vezes existe entre uma instituição com problemas e as pessoas que dão a cara por elas. Quando há alguns meses atrás médicos e outros profissionais de saúde foram agredidos por doentes no Hospital de Setúbal, tal não se justifica pela competência ou demérito desses profissionais, mas sim pelos problemas que a instituição apresenta e que hoje são claros e amplamente noticiados.

Há problemas inegáveis no Serviço Nacional de Saúde - repare-se no exemplo de um dos maiores hospitais de Lisboa ser um hospital improvisado num convento desde o dia 1 de Novembro de 1755 - contudo alguns desses problemas não são da responsabilidade de quem todos os dias dá a cara por essas instituições.

Ao conferir independência às ordens profissionais, como acontece com as três mais antigas - Ordem dos Médicos, Ordem dos Advogados e Ordem dos Engenheiros - mais do que perder algum poder sobre estas classes, o estado ganha instituições a quem pode recorrer - alguém que na sua área pode ser consultado e que pode emitir opiniões altamente especializadas sobre temas da sua área de abrangência.

Nenhuma empresa tomaria decisões sobre os seus investimentos e políticas a adoptar, sem se informar previamente junto de especialistas na área - pelo que não tem sentido que o estado o faça e se arrisque a ser apanhado em falso e as esbanjar o dinheiro dos contribuintes em medidas sem sentido para o país.

Este reconhecimento pelo estado desaparece quando, como agora se propõe, cargos de eleição independente e democrática, dentro de cada uma das ordens, passem a ser de nomeação política ou subordinados a uma figura de nomeação política. O fim da autonomia hierárquica, significa o fim da autonomia de opinião - elementos nomeados por indicação política certamente nunca colocarão em causa quem os nomeou, ao discordar ou a manifestar opiniões incómodas, mesmo que estas representem perspectivas de manifesto interesse comum ao país.

Em troca, o ganho do estado em termos de poder e controlo sobre estas classes profissionais é pequeno. Como se vê no exemplo recente da abertura de um curso de medicina numa universidade privada - em que o governo prevaleceu sobre a opinião da Ordem dos Médicos - o real poder das ordens profissionais não é suficiente para limitar por si a intervenção do estado.

O que o poder político ganha sim, é o desaparecer de instituições a quem era reconhecido mérito (pelo próprio estado) que, dada a sua autonomia, são propensas a emitir por vezes opiniões contraditórias aos interesses dos governantes.

Se o verdadeiro problema fossem aspectos específicos dos estatutos e poderes ditos "de classe" das ordens profissionais, estariam hoje a ser discutidos problemas concretos e "poderes" concretos das ordens profissionais, e não generalizações vagas sobre "ataques ao país", que apelam simplesmente à falta de reconhecimento pela população do mérito destas classes, à confusão entre as instituições e entre as pessoas que por elas dão a cara, e a um certo apelo autoritário que a possibilidade dos mais "fracos" derrubarem os mais "fortes" sempre despertou.

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