Autor: Jorge Dantas
Edição: Jorge Dantas
Capa: Jorge Dantas
11 de Novembro de 2011
Como são os livros impressos? - ESPREITAR
Excerto:
...
”Íntimo Azul
De um tenebroso negro surgiu o meu dia,
esculpindo em silêncio o vazio
num abraço de um só tom:
“Íntimo Azul”
Aroma doce e amargo
de areia entranhada no corpo;
Estilhaços de ondas
mirando avidamente a minha pele;
Gargalhar faminto de vento e aves
ansiando por um pouco mais;
E a noite cintilando até resplandecer,
nua e oca como antes,
numa manhã cheia de cor.”
Uma melodia doce mas
corrompida tocava na sua cabeça impelindo as letras que saíam dos seus dedos.
Ele estava sentado no telhado, de frente para o tímido clarear que anunciava o
nascer do dia. Escrevia. Tinha nas mãos um caderno órfão de várias das suas folhas,
magro e vazio, encolhido pelos restos de papel rasgado no local onde cada
página fora arrancada. “O Livro dos Poemas Mudos” lia-se escrevinhado na capa.
À sua volta telhas
velhas, cheias de fissuras e limos, um molho disperso de fósforos de pontas
carbonizadas, lápis roídos, canetas partidas, bonecos de “Lego” descorados por
sol e chuva vivendo dentro de uma casinha protegida junto à chaminé.
- O que estás aqui a fazer?
- Como se já não tivesses espreitado...
- Sou eu que te inspiro?
- Tu não és assim tão convencida na realidade.
- Sabes lá tu...
- O que te pareceu o poema?
- Acho que consegues melhor...
- És mais simpática também... Mente-me.
- Talvez o faça.
- É agora que te agarro, prendo, e te roubo um beijo?
- Não.
Ele levantou-se,
atravessou para a metade do telhado que caía sobre as traseiras do edifício,
saltou para o vasto terraço que aí existia, aninhado entre as telhas e aberto
para o mar azul da manhã, e regressou ao interior do casarão.
...
Era a chuva no escuro.
O Gil esperava a
chegada do comboio encostado à cancela que limitava a plataforma da estação, a
poucos metros da zona abrigada onde a maioria das pessoas se amontoava. Ele
nunca tinha gostado muito pessoas.
A chuva era magra e
tímida, incapaz de encharcar quem quer que fosse, mas naquela estação mal
iluminada, numa noite de Inverno, após um longo dia de trabalho, chuva é chuva.
Para ele não era.
Ele sonhava-a. Sentia
as gotas de água tocarem-lhe a cara numa picada em sopro. Sentia-as a cair
impie-dosamente sobre o seu pescoço descoberto. Ela estava ali. Não apertou o
casaco. Não se encolheu. Estava petrificado. Não pestanejava sequer.
Ele nunca pestanejava.
Ninguém sabe o que perde nos momentos em que fecha os olhos para os tornar a
abrir. Ele achava que não tinha nada para perder. Ele tinha os olhos fechados.
Ele sabia.
Uma pessoa pode estar
em várias fotografias, mas não é nenhuma delas. Uma pessoa pode estar em vários
sonhos, mas não é nenhum deles. Ela era uma pessoa. Ele e ela era um sonho.
A chuva começava a
desenhar pequenas poças de água. As luzes surgiam reflectidas no chão. As
pingas, que continuavam a cair, faziam-nas tremeluzir. Brilhar.
O céu e as estrelas
encontravam-se aos seus pés. Estendiam-se polvilhando a plataforma.
Sonhar: Partilhar um
céu que fica no chão.
O comboio chegou. Ele
entrou. Aquele não era o comboio certo. Algo de muito errado havia na sua vida.
Ele sabia.
Não havia estrelas no
céu.
...
Loira. Cabelo pelos
ombros. Olhos castanhos, grandes, bonitos, tristes. Rosto vincado, nariz
demasiado grande. Fica-lhe bem. É bonita e não sabe.
Casaco vermelho vivo,
berrante. Defini-lhe o corpo, esmaga-lhe os seios. Calças pretas. Um brilhante
negro surge por baixo do casaco. Pernas cruzadas de lado para mim. Feminina. Comprimida
e apertada em calças dema-siado justas. Parece que quer ser magra. Parece que
quer ser desejada. É. Mas não sabe.
O comboio segue e os
meus olhos descem. Botas altas. Negras. Reluzentes. Baças. Salto fino e longo.
Um homem passa e olha-a de alto a baixo. O desejo. Ela finge
que não vê. E... Não o consegue ver. Olha lá para fora, olha cá para dentro,
olha o vazio, porque tem de olhar algo. Porque não está aqui...
Risco negro nos olhos.
Desbotado. Como a imagem da janela. Duas pequenas manchas de tinta esborratadas
na testa. Lágrimas negras que sobem e não descem. Ou terá sido a chuva no
olhar?
Pergunto-me. Quem é
ela? Para onde vai? No que pensa? Vestida para impressionar. Vestida para a
verem na cama. Será o sexo a dominar o mundo? As mulheres a dominarem os
homens? Será? Onde esteve ela? Continua a olhar o vazio. Acha-se comum, procura
algo que não tem.
Ou não encontra.
Sai do comboio num
lento desequilíbrio, agarrando-se ao banco para não cair. Aqueles saltos agora
estão desenquadrados. Desaparece. Para a sua vida. Para lado nenhum. Nunca
saberá que foi escrita uma história sobre ela. Só por existir. Só por ser bela
e olhar o vazio. Só por não ser perfeita. Só por nunca mais a tornar a ver.
À minha frente: Um
homem lê um livro inclinado sobre as folhas como se estivesse prestes a saltar
e tomar parte na história. Mas lê apenas. Nada mais existe. Já está nas últimas
páginas.
Este homem veste o
casaco adequado. Nem muito vistoso, nem excessivamente sóbrio. E vestes as
calças adequadas. Calça os sapatos adequados. Os seus cabelos têm o branco
adequado, e revelam já a uma careca perfeitamente adequada. O relógio é o
adequado. Os óculos são os adequados.
É sem dúvida uma pessoa
boa, honesta e responsável. Tem cerca de cinquenta anos, mas todos eles perfei-tamente
adequados.
O livro está
amarelecido pelo tempo. É pequeno e aparentado com os livros juvenis do
antigamente. Provavelmente é um livro que já leu há muitos anos atrás. Quando
era jovem. Antes das épocas adequadas da sua vida.
O comboio pára numa
estação. Ele levanta-se e dirige-se à porta decidido. Continua perfeitamente
adequado. Um distinto e nobre cavalheiro. Tenho um relance da capa do livro: “O
Planeta Vermelho.” Título escrito entre marcianos vermelhos, esguios e de
apenas um olho, conduzindo futuristas naves espaciais.
Ele já estava nas
últimas páginas. Mas voltou ao princípio.
Um casal.
Ambos com cerca de
setenta anos. Ambos de casaco vermelho. Ambos de cabelo branco. Ambos de ar
imponente.
Ela repara que eu observo os restantes ocupantes da carruagem
com um sorriso enigmático. Desvia bruscamente os olhos quando cruzamos o
olhar. Entrelaça o braço no dele. Segreda-lhe ao ouvido. Ele olha-me de alto
abaixo demoradamente. Um cavalheiro a defender a sua dama.
Antes de saírem do
comboio ele protege-se com um panamá branco, aos quadrados coloridos, que lhe
tapa metade da cara. Versão do detective de chapéu enterrado na cabeça e
gabardina dos anos zero. Por fim, desa-pareceram na plataforma à medida que o
comboio se afastava.
...
O reflexo dos vidros
impedia a vista para o exterior do comboio. Porém, quando a porta se abriu, o
Gil vislumbrou a plataforma da estação onde se encontrava.
- Merda!
Pegou no telefone.
“Henrique, atrasei-me,
estou aí daqui a 30 min.”
Marcou um novo número.
- Estou?
- Íris?
- Sim? Gil?
- Sim... A minha voz é horrível eu sei... Mas sou eu!
- Sim... Pareces tu... Tudo bem?
- Tudo. E contigo?
- Estou óptima. Vi o Sapic há pouco na praia...
- Ele foi simpático?
- Exageradamente simpático. Já deve ser habitual.
- É.
- Então... Ligaste-me para saber se já desisti do vosso
concerto?
- Não propriamente. Devia estar assim tão ansioso e inseguro
quanto à tua presença hoje à noite?
- Realmente... Marcavas mais uns tantos pontos negativos, mas
ficava-te bem dares-me o tratamento de princesa.
- Isso é manipulação. É feio fazer isso a um rapazinho
inocente como eu.
- Depende da perspectiva...
- A perspectiva da inocência?
- Isso nem merece comentário... Da perspectiva de quem
manipula quem...
- Não me intimidas assim tão facilmente... Olha, queres vir
mais cedo? Por volta das dez? Eu apresento-te a casa... Queres que te vá
apanhar?
- Eu ainda não disse que ia...
- Estou-te a tratar demasiado bem. Tenho de parar. É assim que
as coisas começam a correr mal para o meu lado.
...
Chegou a casa e
dirigiu-se à sala de estar onde encontrou o Henrique furibundo.
- Sabes onde anda o Sapic?
- Deve ter ido surfar. Ainda não voltou?
- Não.
- Já sabes como ele é. Deve estar a aí a chegar, não te
preocupes.
- Não me preocupo? Nós dependemos daquele irresponsável!
- Desde que ele chegue antes do concerto estamos safos. Não te
preocupes.
Pouco depois o amigo
chegou a casa sorridente. Prepa-raram o concerto. Prepararam a festa. E o Gil
subiu até o seu quarto apressado, sabendo que a Íris estaria a chegar.
...
- Estás aqui?
Uma rapariga
irrealmente bonita desenhava com a ponta do dedo algo na folha de humidade que
cobria as janelas do quarto do Gil. Cabelo castanho claro, ondulado, comprido,
despenteado. Olhos cor de mel, grandes, brilhantes, fixos no Gil. Nariz pequeno
e arrebitado, lábios volumosos, pele levemente morena, corpo esguio de uma
sensualidade desesperante. Vestia um top
preto, que seria discreto noutra rapariga qualquer. Calças de ganga muito
justas às pernas compridas e ancas docemente delineadas, que sempre deixavam o
Gil sem respiração. Pés descalços, uns saltos pretos aban-donados junto à cama,
caminhando para ele, correndo para ele, abandonando a janela num movimento irre-petível
de contorcionismo, a que se seguiu uma pirueta desequilibrada, enquanto o rosto
se abria num sorriso avassalador, que arrasou o pouco controlo que restava ao
rapaz. A rapariga, alta mas não tanto, desapareceu nos seus braços, colando-se
ao seu corpo como o sol de uma tarde de Verão.
- Nunca mais chegavas...
- Não estava à espera de ti Leilane...
- Porquê? Eu estou sempre à tua espera Gil.
A rapariga mantinha-se
entrelaçada ao rapaz encarando-o, junto ao seu pescoço, num equilíbrio
divertido nas pontas dos pés. O Gil, momentaneamente incapaz de pensar,
limitava-se a sentir.
- Já tinha saudades do teu cheiro. – disse a Leilane
enroscando suavemente o rosto no peito do Gil.
- O que é que tens contra o meu perfume?
- Não é perfume. É cheiro.
O Gil sentiu a pele
áspera das mãos da rapariga apertarem-se em torno das suas:
- Amoro-te.
- O quê?
- Porque não? É inerente à minha condição de desnamorada.
Culpa tua já que mencionas o facto...
A Leilane afastou-se
subitamente do Gil, dirigindo-se à cama do rapaz.
- Já que nunca me convidaste, trouxe o nosso jantar.
Voltou-se. Protegia um
montinho de amoras pretas entre as mãos.
- Perfeitamente adequado. Não achas?
- ...
- Gosto dessas tuas respostas. Tu sabes que vais provar uma...
A rapariga colocou um
dos frutos negros entre os lábios do rapaz.
- Há toneladas delas nas silvas do vosso jardim. Se não te
souberem a nada, é porque estão boas. Elas sabem exactamente como tu. Doce. Salgado.
Ácido. Amargo.
- ...
- Estás-me a deixar a falar sozinha. Não gosto. Não me
perguntas como sei que elas sabem a ti?
- ...
O Gil continuava
incapaz de falar convenientemente, pelo que respondia silenciosamente com a sua
mímica pouco exuberante. Divertido. Desconfiado. Zangado. Aborrecido.
Ameaçador. Por fim conseguiu articular algumas palavras:
- Suponho... Suponho que as raparigas tenham uma imaginação
perfeitamente adequada.
- Certíssimo. É assim que fazemos magia. E eu gosto de tomar
certas liberdades...
A Leilane atirou-se de
costas para cima da cama, espreguiçando-se, enquanto lançava um olhar
irresistível ao Gil. As amoras acabaram espalhadas à sua volta.
- Quanto tempo me vais deixar à espera?
- O tempo que for preciso...
O Gil aproximou-se da
aparelhagem:
- O que queres ouvir?
- Jeff Buckley. Vicky Carr. Os dois ao mesmo tempo... Tu
sabes.
- “Noutra vida quando os dois formos gatos?”[1]
- Já somos os dois gatos.
A Leilane agarrou o
caderno branco que se encontrava em cima da mesinha de cabeceira: “O Livro dos
Poemas Mudos”
- O que queres que eu pense quando tudo o que tu escreves é
sobre mim? Sobre nós. Passas o tempo todo a rockar-me... É normal que eu tenha
expectativas.
- Já te disse que não acho que fosse resultar. Somos demasiado
diferentes.
- Em quê? Em algo que interesse? Que tenha importância?
- Tu sabes que é verdade.
- É verdade o quê? Que eu gosto de ti. Que tu gostas de mim. O
que mais precisas?
- De tudo o resto?
- O que é que as gajas patéticas destas fotos, por cima da tua
cama, têm? O que é que elas são que eu não sou? É elas que queres ver quando
acordas?
- ...
- Silêncio? Já? E o que tens a dizer do facto de te teres
ajoelhado aos meus pés, de me teres olhado nos olhos, e de me teres pedido para
casar contigo?
- Estávamos a brincar...
- Estávamos? Não foi propriamente essa a conclusão da conversa
que se seguiu...
- Tens razão. Não foi uma mentira. Mas também não foi verdade.
Foi um sonho.
- E se eu quiser voltar a esse sonho?
- Não podemos. Os sonhos começam sem darmos conta. Tal como
terminam. Não há forma de voltar.
- Talvez seja melhor assim... Tu sabes que eu quero tudo. Tu
nem um pouco és capaz de arriscar por mim.
- Nem sei como responder a isso.
- Que raiva! Tens de fazer melhor do que isso!
- ...
- ...
- Eu nem sei se tu existes. Se és real. Se és maravilhosa ou
se sou eu que te torno maravilhosa.
- De que é que tu estás à espera? Que faça sentido? Precisas
de um plano? Da existência de uma certa quantidade de coisas para quereres
estar comigo? Não percebes que não há razão? Que essa é a melhor parte? Gostar
de alguém apenas pelo que essa pessoa nos faz sentir. Incompreensível.
Irresponsável. Arriscado. Estúpido. É a melhor razão para se gostar de alguém.
A vida não se explica, vive-se.
- ...
- “Até que a agulha salte, o disco acabe, e o som oco do fim
se faça ouvir nas suas batidas secas e ritmadas.” Foi o que me prometes-te... O
que queres que seja a tua vida? “Cada dia que passava ele continuava o seu
lento suicídio. Esquecia-se de viver.” Agrada-te?
- ...
-
Nunca fechas os olhos? Não fazes coisas que te assustem? Nunca estiveste
sozinho no escuro? Nunca fizeste nada perigoso? Impulsivo? Estúpido? Só pela
sensação de o fazer? Só pelo desafio? Não gostas de molho picante? Chocolate
amargo? O cheiro do suor? Não? Nada de errado? Nada desconfortável? Não? Nada?
Estás a planear dizer que viveste?
-
...
-
Estás-me a mentir! Já o fizeste comigo… Vezes sem conta. Sempre errado.
O Gil sentou-se na cama ao lado da Leilane.
Inclinou-se sobre o rosto da rapariga que o encarava por detrás de um olhar
ameaçadoramente húmido e, um após o outro, beijou-lhe os olhos.
-
O que estás a fazer?
-
Estou a matar as tuas lágrimas.
Gargalhada.
-
Que coisa tão estúpida.
-
Resultou. Agora já estão bastante mortas.
-
...
-
Não gosto de as ver escorrer. É como se descessem aos gritos até se esmagarem
no chão.
-
És a minha pessoa preferida.
-
Sem condições?
Resmungo.
-
Odeimo-te.
-
É justo.
O Gil levantou-se.
-
Vais-me deixar aqui? Vais ter com ela?
-
Talvez...
A rapariga deixou-se cair de novo.
-
Já nem quero saber. Fico aqui à tua espera.
-
Se tivesse um só beijo... – sussurrou o Gil à medida que se afastava da
rapariga, caminhando de costas, incapaz de desviar os olhos da silhueta triste,
bela, ansiosa, des-pedindo-se silenciosamente de si – Era teu.
Quando conseguiu fechar a porta, pegou no
telemóvel para ver as horas. Eram onze e cinco. Tinha de se apressar para se
juntar aos outros ou iam acabar por atrasar o concerto. O mostrador anunciava
ainda uma mensagem recebida há cerca de meia hora atrás:
“Cheguei!
Vens-me receber? Íris”
...