O que acontece depois de abrires uma nova porta

 


 As minhas boas vindas! O meu nome é Sebastião Clemente. Não só é um enorme prazer finalmente conhecer a cara por trás do seu nome, como tenho uma enorme curiosidade sobre onde nos poderá conduzir a conversa desta noite.

 Entre, por favor, deixe-me apresentar-lhe o espaço. 

 O homem de laço violeta por trás do balcão é o nosso anfitrião. Zacarias Zarolho, pelo menos de nome artístico, penso que jamais confessará alguém a veracidade de tal epiteto como registo de baptismo. A minha suspeita é de que se trata de um cognome autoinfligido para desarmar os incautos que o medem pela aparência austera. Humorista em pele de lagarto, ou um monge traquinas, não se aproxime na ignorância da armadilha. Vai ver, você vai gostar dele. 

 Este seu covil, nem palco nem taberna, de luzes sépia e sombras negras, tremeluzindo na ténue brisa que se esgueira pelas frinchas dos centenários caixilhos das janelas, sempre me encantou. Talvez seja o cheiro das madeiras envelhecidas ou os laivos de perfume feminino eternamente suspenso nos mais improváveis recantos. Tudo, licores doces, amargos ou suaves, discursos duros, ásperos, ou eloquentes, gargalhadas, sussurros, lágrimas, gritos e ameaças. Verdadeiras histórias aconteceram aqui. 

 O que lhe parece?

 Venha. Antes que me perca em reminiscências e, acredite, deve receá-lo, vamos até à nossa mesa. O Zacarias é o tipo de profissional metódico que olha alguém nos olhos e lhe extrai a verdade. Um ignorante refém da eficiência é certo, mas dotado de um talento para o apaziguar gustativo, que o que lhe falta em vidente é compensado pelo sublime deleite do palato. Se já lhe tirou as medidas, não tardará em nos servir uma poção afinada ao detalhe num elegante copo de cristal. 

 Nada receie. Os venenos nunca foram uma paixão.

 Algo que sempre me encantou nas nossas conversas foi a forma como defende os seus princípios. São os princípios, não as leis, que fazem uma nação. Lembro-me sempre de ser jovem, rebelde de auspício mas na verdade aborrecido de insonso, e de perder os ideais ao primeiro sinal de conflito. Somos animais sociais, em demasia, todos tentamos fazer parte do grupo e sentir que nos vêm como iguais. Mas você?

 O que faz um leão não é a sua força bruta, é a capacidade de rugir.

 Eu sei o que está a pensar.

 Palavras. Insinuações. Detalhes. Não há nada mais perigoso do que uma conversa com verdades. Seja a volúpia de um abraço, seja o fervor de uma batalha, não há verdadeiramente forma de descobrir o desenlace que não seja aceitar o desafio e mergulhar no debate.

 A mentira? O humor? Alibis? Omissões? Fácil. Demasiado fácil. 

 Gostava de lhe perguntar, em algum momento pensa nas consequências? Quando diz o que lhe pediram para não dizer, quando faz o que sabe que não devia fazer, quando pensa no que não pode pensar, em algum momento tem... Dúvidas? Receios? Arrependimentos? A certeza de que um dia alguém como eu se vai sentar na sua frente e expressar admiração?

 Imagine este cenário. Era uma vez um rapaz franzino de joelhos tortos mas olhar brilhante a correr feliz por uma estrada de terra serpenteando entre múltiplas poças de lama. Pueril é certo, mas há mais qualidades nele para além da óbvia inocência.  

 Ao passar junto à entrada de um pomar, duas traves de madeira negra que um dia foram um portão, o rapaz detém subitamente a corrida. Um gemido.

 Curioso, primeiro espreita a medo, em seguida entra pé ante pé no pomar e finalmente, imparável, perde o controlo e começa a correr rumo à origem de um segundo arrolhar de delícia.  Desajeitado pisa de forma inaudita uma batina negra e um vestido florido abandonados sofregamente sobre uma laje de granito.

 À sua frente carne, suor, amor? Ora cego, ora doce, ora uma fúria faminta impossível de saciar.

 Fugiu.

 Tão rápido como alguma vez tinha corrido, numa vertigem confusa e penosa de pecador deliberado e consciente da sua culpa e prazer.

 Tinha de contar a alguém antes de rebentar, como seria possível não contar? Estava em sofrimento. Sentia-se suficientemente sábio para distinguir o certo do errado, suficientemente adulto para denunciar um crime.  Ruminando em busca de um confidente, o rapaz decide contar o que viu ao seu irmão.

 Uma má decisão.

 Desculpe. Zacarias, obrigado! Mas que sublime manancial etílico é este que nos serve? Efervescente? Azul? Crepitante? Uma nesga de espuma escorrendo sensualmente pelo vidro do copo? 

 Algo a descobrir? Vamos a isso. Brindo a si. Que saboreie a vida até ao seu último trago.

 O dia seguinte desabou numa fria manhã de nevoeiro toldando os já nebulosos pensamentos do rapaz. Ao entrar na capela notou o seu irmão no altar num destaque de vencedor radiando após efusiva recompensa. Mas porquê? Qual a razão de tal prémio?

 Um temor premonitório atacou de forma impiedosa o coração do rapaz, uma tropelia de aperto sem fôlego que lhe consumia a alma numa ansiedade maquiavélica.

 Só podia ser.

 Dirigiu-se cautelosamente para a porta num assomo de cobardia, quando do negro oculto um braço forte lhe apertou o pescoço e o arrastou esganado para o breu.

 Subitamente sentiu a mão em pânico, os ossos esmagados, torcidos, uma dor lancinante que o rasgava e apertava e torcia e lhe arrancava os dedos, até partir, até quebrar, um grito mudo de dor e um estilhaço e uma articulação desfeita e um dedo solto pendendo na ponta de naco de carne deformada.

 A dor. 

 A dor.

 E subitamente uma voz cruel que lhe dizia para pensar no que mais podia perder.

 A história tem um final feliz. O rapaz aprendeu a sua lição e dali em diante jamais ousou que os seus ideais se atravessassem no seu caminho para o sucesso, pois se o mundo tem as suas leis, a mais certa é que todos os tiranos têm medo de um dia serem as vítimas e que todas as vítimas desejam por uma vez serem os tiranos.

 Notei que enquanto ouvias a minha história, a derradeira essência deste nosso encontro se desenhou numa caligrafia de metáforas ácidas nos teus olhos. Só uma verdadeira escolha nos demonstra o poder da Humanidade. Só um verdadeiro sacrifício testa friamente a grandeza de uma escolha.

 Sim. O gume de metal negro que em laivos sedutores o meu casaco te revela é uma arma. Não está carregada, não é por agora uma ameaça para ti.

 Aquilo que tens apontado ao coração não é o cano de uma pistola. É algo de muito maior perigo. Algo que verdadeiramente deves recear.

 É verdade que uma bala pode matar um homem, mas para matar um país, uma civilização, precisamos de algo capaz de matar os seus princípios. Precisamos do poder das palavras.

 Sorris? Tens a certeza de que os grandes tiranos da história não puseram fim a mais vidas com palavras do que com canhões?

 Há muito tempo atrás numa galáxia longínqua também eu estive sentado nessa cadeira, também eu bebi a mistura sublime que o Zacarias deixou sobre a mesa com um sorriso de raposa, também eu fui seduzido por uma rajada de palavras doces e amargas ferindo-me ora em cheio, ora de raspão.

 Tal como os sonhos, os princípios também morrem quando parte da nossa vida morre com eles. O que eu sabia quando estava sentado nessa cadeira, o que tu também sabes hoje que estás num lugar que já foi o meu, é que tanto sonhos como princípios podem renascer sob uma forma diferente. Tal como podemos sempre ter novos sonhos, também podemos sempre descobrir novos princípios.

 Estas são as escolhas verdadeiras que todos tomamos. São a essência do sacrifício, a certeza de que algo tem de morrer e que somos nós, com as nossas próprias mãos, que o vamos matar.

 O mais fácil num crime é encontrar justificações para o cometer.

 Tu esperas que eu acredite que quando ficas em silêncio a ver o teu chefe destratar os teus colegas estás a defender os teus princípios? Naquele ténue momento em que no teu fundo algo quente se acende por não seres tu o alvo da sua ira?

 Que juiz te vai absolver por fintares os impostos na esperança de que a tua vida seja um pouco melhor? Será correcto sacrificares uma nesga do futuro do teu país?

 Porque estás tu na disposição de arriscar um amanhã em chamas, apenas para não teres hoje o desconforto de uma vida mais sustentável?

 E aqueles que são diferentes de ti, que não compreendes, que te provocam um incómodo que não sabes explicar, um medo irracional, profundo, egoísta, assassino. Porque não podem eles decidir um caminho diferente do teu?

 Todos assassinamos princípios. Todos. Todos os dias.

 O mal é banal.

 O que faz de nós apenas dois bons amigos à mesa para um chá, negociando um acordo melancólico que pretende ser um tratado mas se assemelha a uma carta de amor. O certo e o errado são apenas duas perspectivas da mesma verdade.

 Mas eu sei porque o fazes, o porquê da tua respiração lenta de leopardo não acompanhar o galope do sangue de serpente que te corre nas veias. O porquê de ainda estares aí nessa cadeira e de a arma que eu trouxe não precisar sequer de balas para estar armada. Tal como eu, basta-te olhar os olhos deles para te lembrares porque os proteges e porque fazes tudo por eles. Se Aquiles tinha um calcanhar, os nossos vêm aos pares e lançam o caos em frenética ternura desenfreada.

 É por isso que eu sei que se te pedir para beijares, os teus lábios se unirão prontamente aos mais abjetos dos lábios, numa gula de heroísmo e vontade que o mais nauseabundo dos nojos não vai conseguir deter. Língua, saliva, sangue e podre e umas mãos sebosas no teu corpo contaminando a tua pele e percorrendo os teus medos e sonhos como num pesadelo que não chega a ser vergonha e num momento já terminou.

 É por isso que eu sei que se a minha ordem for matar, talvez não o faças de imediato, talvez não queiras ver, talvez lhe queiras chamar outro nome, mas no final a vida que te pedi ser-me-á entregue e as justificações que encontrares te aconchegarão o espírito dissipando todas as dúvidas.

 Aperta a mão que te estendo. Agora! Ser humano é mais do que rir e chorar e sonhar e perder e mentir e dar e pedir e beijar e amar e sofrer. É saber lutar para sobreviver.

 É este o contrato que tenho para te propor. Tu dás-me o que eu quero, em troca dou-te o que tu queres. O preço? Apenas a tua alma.

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