Título: alimenta os tubarões com carne de sereia
Autor: Jorge Dantas
Editor: Jorge Dantas
Mão-de-obra: 2013-2018
Data de Publicação: Agosto 2018
Género: Ficção
Kindle: AQUI
PDF: ---
Impressão Amazon: AQUI
Impressão Bubok: ---
Excerto:
Editor: Jorge Dantas
Mão-de-obra: 2013-2018
Data de Publicação: Agosto 2018
Género: Ficção
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Impressão Amazon: AQUI
Impressão Bubok: ---
Excerto:
º
A mulher de sardas e cabelos castanhos estava
a sair do carro metalizado quando o viu.
Bateu a porta com um pouco mais de força do
que seria necessário enquanto perscrutava o casaco negro, o cabelo comprido, a
expressão furiosa. Tratava-se de um rosto familiar. Mas de onde?
Compôs a gola do fato cinzento, soltou os
cabelos castanhos, e afastou-se do carro metalizado tentando eliminar do
pensamento a imagem do motorista barbudo concentrado numa amena gula na sua
pele coberta de sardas, enquanto observava o homem de cabelos compridos a
desaparecer por entre os corpos que enchiam a avenida, caminhando
apressadamente na direcção das torres do parlamento.
Ela começou a caminhar na direcção oposta.
A maioria dos transeuntes cruzava o alcatrão rugoso,
ignorando os passeios cheios de lixo acumulado de encontro às fachadas
degradadas. Os edifícios naquela zona da cidade, compostos por telhados tortos
e cheios de limos, paredes escurecidas pela humidade e grandes janelas
rectangulares, estavam na sua maioria abandonados, aguardando que o passar do
tempo arrombasse as suas estruturas carcomidas e os demolisse no esquecimento.
Atravessou uma praça circular de fachadas
negras, onde o calcário corroído implorava por uma lavagem paliativa, cruzando
as portas de vidros estilhaçados do antigo teatro, que se encontravam
recobertas por cartazes de tons vivos de azul anunciando para o dia seguinte a
estreia de uma peça com o título "Uma lua debaixo das estrelas".
Continuou o seu caminho por uma avenida de passeios lamacentos, à entrada da
qual existia uma escadaria de degraus desgastados que terminava de encontro a
um portão de grossas barras de metal com uma tabuleta amarrada. Esta informava
que aquela estação do metropolitano se mantinha encerrada e que reabriria logo
que tal fosse possível.
As ruas encontravam-se repletas de idosos, de
cabelos ralos, roupas coçadas, passo lento e arrastado. Idosos de óculos de
lentes grossas, observando das janelas o corrupio da hora do almoço, idosos de
pele pálida e flácida sentados nos degraus das entradas, coçando os queixos
peludos nos lancilos dos passeios, ou vagueando sem rumo por aquelas ruas como
se ainda acrescentassem alguma coisa à nação. Idosos apanhando aqui e ali um
pedaço abandonado de lixo em decomposição, ou procurando uma moeda caída entre
as pedras soltas do passeio, idosos tentando chamar a atenção de quem por eles
passava com olhares piedosos e mãos estendidas, para logo desaparecerem de novo
rumo aos seus empregos, como um rebanho de condenados, até só restarem aqueles
que já mais não faziam mais do que se arrastar pelos cantos e consumir
impunemente os recursos do país. Aquelas pessoas causavam-lhe repulsa, medo,
nojo, uma sensação de insegurança e de perda que não sabia definir, mas que a
levam a encolher-se dentro da gola do casaco, a olhar em frente fixa no
horizonte e a acelerar o passo o mais que podia sem começar a correr.
Finalmente passou pelo posto de controlo, uma
cancela dourada que vedava a rua junto a um casinhoto de pedra imaculada onde
dois polícias mal-encarados, um de óculos escuros e mãos atrás das costas, o
outro de bigode espesso palitando os dentes com as unhas, impediam que os
indivíduos indesejáveis entrassem na parte nobre da cidade.
Um arrepio, um profundo sentimento de alívio,
percorreu toda a sua pele. Entrara numa avenida de passeios largos e limpos,
ladeada por duas fileiras de árvores esguias onde frondosas folhagens
verdejantes alternavam com armações elegantes de cores amarelecidas soltando-se
a cada sopro de vento e estendendo-se pelo chão.
As fachadas restauradas dos edifícios acolhiam
montras discretas com artigos de pele virginal, vestidos de cocktail e joelharia exuberante; mas
também agências bancárias com mulheres de longas pernas e sorrisos, maquilhagem
forte e cabelos cuidados, incitando os visitantes a entrar, ou até escritórios
de advogados libertando pelas janelas a alegria e entusiasmo das suas
discussões.
Ao longo da avenida, seguindo na mesma
direcção do que ela, caminhavam pequenos grupos de executivos de fato brilhante
e gargalhada fácil, homens e mulheres de vozes confiantes que se faziam ouvir a
vários metros de distância.
Entretida em seguir estas conversas vadias sobre
escândalos, coscuvilhice e ambições, ela percorreu a curta avenida,
desembocando numa grandiosa praça rectangular, vasta e luminosa, que se
estendia do edifício da ópera num dos topos, uma imponente estrutura de
colunas, rebites e enormes cúpulas de cobre esverdeado, até ao tribunal no topo
oposto, um edifício moderno de linhas rectas, paredes de vidro e metal. Entre
os dois existia um vasto mar de esplanadas desertas, mesas e cadeiras de design sofisticado, cheias de água e
respingos de lama, ainda escorrendo para o chão a chuva que caíra durante a
manhã.
No centro da praça erguia-se uma fonte de
mármore onde a escultura de uma mulher nua, de corpo delicadamente encostado a
uma rocha, vertia do seu ventre, trespassado por uma lança, um fio de água que
lhe escorria pela pele e lhe banhava os pés imersos num espelho líquido que
reflectia o céu cinzento.
- Corre besta! Corre!
Ao grito masculino seguiu-se uma gargalhada
alvoraçada e o som de algo a cair aos trambolhões.
Ela virou-se assustada.
- Olha o gajo a correr!
- Corre cabrão!
- Corre!
Um grupo de homens engravatados amontoados à
porta de um restaurante junto à esquadra da polícia soltava urros de apoio na
direcção de um deles, de fato azul, cabelo loiro encaracolado e uma expressão
de susto, que corria desengonçadamente com as solas dos sapatos escorregando no
empedrado húmido da praça na direcção da fonte. A gravata, que na fúria da
corrida lhe escapava por cima do ombro, soltava umas chamas azuladas que lhe
alastravam na direcção do pescoço a cada embate do tecido de encontro ao
casaco.
- Olha o gajo a arder meu!
- Corre fofinho!
Ao chegar ao centro da praça o homem sacudiu a gravata em chamas, apoiou
os braços no parapeito de mármore e mergulhou a cabeça e os ombros no espelho
de água.
Ela começou também a correr na direcção dele.
- Está tudo bem?!
O homem de cabelo encaracolado retirou a
cabeça do pequeno lago. Os cabelos pingavam encharcando a camisa e o blazer azul. A respiração acelerada. A
gravata chamuscada. Um sorriso idiota nos lábios.
Por entre um coro de vivas e aplausos, a
plateia de homens engravatados acenou amigavelmente a um polícia que entretanto
tinha acorrido sorridente à porta da esquadra e desapareceu de novo no interior
do restaurante com um entusiasmo redobrado.
- Você está bem? O que é aconteceu?
- insistiu a mulher de cabelos castanhos num tom atónito.
- Quando um louco em chamas investe
vertiginosamente pelas ruas, se fores uma mulher de bem, pensa na virgem,
acelera nas socas e aguarda que a polícia o apanhe. É para mim um mistério o facto
de a senhora ter vindo passear sofregamente as suas sardas até junto do meu
corpinho mutilado nessa ansia de socorrista em dia de atentado.
Ela tentou responder, mas ficou muda, indecisa
e impotente para combater aquele jogo de palavras. Ele continuava a pingar para
o chão.
- Sabe, quando acordei esta manhã
estava longe de imaginar que os anjos e a minha mãezinha, que o céu tem em boa
graça há um par de estações, me estivesse a preparar um dia de tal intensidade
física e hormonal. Mas, enfim, o que podemos nós fazer para além de responder
com graça e mestria às exigências com que o destino nos brinda nestes dias de
festividade olímpica? Nestes dias em que por mais que apertemos as perninhas e
façamos penitência, somos obrigados a assumir a nossa total submissão ao
maluquinho que pressiona as teclas e nos inventa a vida?
Ela tentou simultaneamente sorrir, confirmar
que ele estava bem, e prescrever-lhe sexo anal num tom e num alfabeto que
incluíssem o escárnio e o brilhantismo misturados com a dose adequada de
agressividade. Contudo antes que conseguisse montar uma frase suficientemente
ácida, ele voltou a disparar:
- O seu silêncio comove-me e
excita-me cara donzela, mas se me permitis a ousadia e a arrogância do
conselho, não aqueças o coração de um homem que há breves minutos estava em
chamas, porque a combustão lhe pode consumir o corpinho, as noites de insónia e
a prol de bastardos. O segredo minha cara, está no comburente, mas se precisa
de uma resposta às suas perguntas, segundo a ordem pela qual as enunciou elas
são: Sim. Sim. Um dia normal de trabalho.
- Ainda bem - balbuciou a mulher de
cabelos castanhos - Ainda bem... Não percebi!? O que é que estava a fazer? Como
é que pegou fogo a si próprio?
- Eu sei que me descrevi como um
maluquinho, mas você por delicadeza podia ter interpretado as minhas palavras
como a curiosa manifestação de um humor rebuscado e retorcido. Não me parece
que existam muitos homens sedentos de se imolarem à hora do almoço, o que
talvez signifique que o seu diagnóstico não se situe tanto na área da
psiquiatria, como eu estava a sopor, mas mais no capítulo da falta de destreza
e tecnologia. Posso-lhe garantir, sem qualquer travo de vanglória, que tal como
a minha mente não se coaduna com a ideação suicida, as minhas mãozinhas são
competentes na mais exigente motricidade fina e dedilhar de estruturas
delicadas, pelo que não me incendiei a mim próprio nem voluntária nem
acidentalmente.
Ela franziu o sobrolho, meditou numa resposta
que terminasse a conversa e o afastasse de si, contudo as respostas que ele lhe
estava a dar ressoaram-lhe de novo no pensamento e notou a sua incongruência,
optando por lhe perguntar, em tom de desafio:
- Você disse que a razão de se ter
incendiado estava relacionada com o seu trabalho... Como é alguém acaba
incendiado a trabalhar sem ser voluntária ou acidentalmente?
- O meu trabalho é proporcionar o
deleite, inspiração e motivação das jovens e impressionáveis mentes brilhantes
da empresa, estimulando-lhes toda a sua produtividade e recursos laborais.
« Não me olhe assim, é um trabalho
real focado num objectivo concreto, aumentar a boa disposição e produtividade
dentro da empresa. Hoje chego a casa e posso dizer que me incendiaram a gravata
numa taça de champanhe e que tive a honra de atravessar a praça magna afogueado
que nem um foguete para a apagar mergulhando numa fonte. O que é você fez hoje
digno de nota?
- Fiz...
A mulher de cabelos castanhos não sabia como
iria concluir a frase.
- Agradeço uma vez mais a sua
preocupação e o facto de me acompanhar à porta do restaurante... - continuou
ele.
- Não o estou a acompanhar...
Simplesmente... Parece-me que vamos os dois para o mesmo local.
- Então hoje não é o meu dia de
sorte...
Não. Não é.
Ela e o homem de cabelos encaracolados
cumpriram em silêncio o restante trajecto em direcção à porta do restaurante,
serpenteando por entre as mesas vazias da esplanada, até que a voz de uma
mulher prestes a ter um orgasmo começou a soar estridente vinda de dentro das
calças dele.
- Também é um requisito do meu
trabalho... - explicou ele atendendo a chamada.
º
- Estou?
O homem de cabelos compridos atravessava a
praça em frente à escadaria do parlamento. Ao passar junto à estrutura de vidro
azul que existia no centro, uma sombra moveu-se no seu interior numa espiral
ameaçadora.
- Mestre do comité dos
melancólicos, domador de peripécias e de outros biscates de menor arte, aquele
que é chamado de iluminista, o rabino da mentira e ilusão! O que posso eu, um
ser tão terreno como desprovido de iluminura, fazer por alguém tão distinto
como vossa senhoria?
- Estás realmente bem-disposto...
Fico contente.
- Adrenalina é vida!
- Preciso da tua ajuda.
- Da minha ajuda? Para quê?
- Tu sabes.
- Tens mente e pena entupidas e
novo?
- Precisos que venhas ter comigo.
- Onde, lá a casa?
- Sim.
- Já?
- Quando puderes.
- Precisas que te corte essa crina
de concubina? Te massaje os joanetes, te corte as unhas do pé e te chame de
querida? Ou vais-me arranjar uma tarefa mais digna da minha psicose?
- É possível que a minha vizinha
caia pelo buraco do tecto enquanto...
- Vendido!
- Óptimo.
- Se é que essa vizinha existe...
Quando oiço falar três vezes da mesma mulher antes de lhe espreitar os dentes,
começo a desconfiar que os boatos não aguentam uma craveira mais rigorosa.
- Eu tenho a vizinha, o buraco no
tecto e um colchão de água. Qual é o plano B para a tua tarde?
- Estou a caminho.
- Obrigado. Olha, já agora, traz-me
folhas e...
- Folhas? As minhas fauces podem
ser de merceeiro, mas o meu sangue é indubitavelmente de criador de mamutes. O
que é que tu me queres mesmo pedir?
- Papel branco e...
- Tinta? Um discurso impresso? Uma
vitória eleitoral? A ti é que te chamam iluminista!
- Esquece. Aparece só, está bem?
- Feito.
º
O Pirata retirou a gravata destruída do
pescoço, abriu os primeiros botões da camisa e atirou a tira de tecido queimado
para um balde do lixo metálico que se encontrava junto ao balcão da entrada do
restaurante. Começava a exalar um cheiro nauseabundo. Pediu uma toalha a uma
jovem de olhos compridos e rosto redondo, que logo se prontificou para a ir
buscar, e olhou a mulher de fato cinzento, cabelos castanhos compridos e pele
morena coberta de sardas que inexplicavelmente se tinha mantido junto a ele
após terem entrado no restaurante.
- São eles? - perguntou ela apontando
para uma mesa comprida ao fundo sala, à volta da qual um grupo de jovens
executivos se sentava desordenadamente falando alto e incitando os mais tímidos
a brindes sucessivos.
- São. Mas como vê, já não precisam
de mim. Não há nada como misturar lagosta com litros de alvarinho e bagaceira
velha.
- Tenho de lhe perguntar outra vez
- disse ela aproximando-se - O que é faz concretamente? Qual é o seu trabalho?
Parece-me interessante...
A empregada de rosto redondo regressou com a
toalha, e ele começou a limpar o rosto e a secar o cabelo antes de responder. O
olhar da mulher de cabelos castanhos saltitava nervosamente entre ele e os seus
companheiros ao fundo da sala, que estavam agora a tentar convencer uma das
empregadas mais jovens a subir para cima da mesa.
- Faço tudo - respondeu o pirata -
Dizer disparates, lançar boatos, fazer serenatas às secretárias...
- Como é que lançar boatos cria bom
ambiente numa empresa?
- É uma empresa predominantemente
masculina, logo com boa tolerância a mexericos... Não me olhe assim, você tem
tendência a julgar depressa as pessoas... Veja, é apenas um lugar-comum. As
mulheres escondem as suas conquistas e as suas aventuras, os homens exibem-nas
e vangloriam-se delas... Eu não faço o mundo assim, mas aproveito aquilo que
ele me dá.
- Muito bem... Conseguiu-se safar
com alguma...
- Com alguma quê?
Ela encolheu os ombros e sorriu
enigmaticamente.
- Tem alguém à sua espera? -
perguntou o pirata.
- Ainda não chegou... - disse ela
esticando o pescoço e perscrutando as mesas dos cantos.
- Posso oferecer-lhe uma bebida?
- Pode, mas...
Ele abriu um braço convidando-a a aproximar-se
do balcão, antes de insistir:
- Mas?
- Para alguém com a sua verborreia,
esse foi um convite muito banal...
- Posso-me tornar cansativo... Você
não me pareceu com tolerância para mais disparate.
Ele sacudiu mais uma vez o blazer, limpou as mãos e devolveu a
toalha à empregada de olhos compridos, pedindo-lhe para lhes preparar uma
bebida apontado a prateleira repleta de garrafas atrás dela.
- Como é que você disse... Eu julgo
as pessoas muito depressa?
- É assim a ambivalência da
sedução, ou a simbiose entre o canto lírico e o vernáculo de feirante, quer
disparemos versos de amor ou balas de borrachas, tudo depende do que a outra
pessoa decidir ouvir.
- Está a recuperar a confiança?
Você tem a noção de que esse género de discurso inviabiliza qualquer diálogo
racional?
- Tenho. Estava-me só a meter
consigo... A tentar perceber se aguentava a parada.
Um homem careca de fato creme, camisa branca
com colarinho cor-de-rosa e gravata vermelha entrou esbaforido no restaurante
olhando em todas as direcções.
º
- Está a começar a chover! - gritou
o seu chefe passando por ela sem se deter - Onde é a minha mesa? Onde? Esta
aqui? Obrigado.
- É o meu patrão - disse a mulher
de cabelos castanhos - Tenho de ir, peço desculpa...
O homem de cabelos encaracolados fez uma
pequena vénia sem responder verbalmente. Parecia confuso.
Ela pegou no copo que a empregada acabava de
colocar junto a eles sobre o balcão, acenou, e encaminhou-se na direcção da
mesa onde o seu chefe se sentava, vendo-se obrigada a parar e a desviar-se do
grupo de homens ululantes que há pouco se encontravam no fundo sala. Olhou-os
temerosa, contudo eles passaram por ela sem se deterem, estacando junto ao
homem de cabelos encaracolados que os saudou entusiasticamente.
Aproximou-se da mesa do homem careca e
sentou-se de frente para ele, ficando de lado para o balcão e para o grupo
alvoraçado que agora o rodeava.
O seu chefe olhava-a com uma ternura que a
deixou incomodada. Levou instintivamente a mão ao seu longo cabelo castanho.
Ele sorriu. A sua face coberta de hematomas, a careca reluzente, a gravata
berrante, o fato puído. Era uma caricatura de um ser humano.
- Chefe, o que é que lhe aconteceu?
- Uns pequenos contratempos... Só
uns pequenos contratempos... Como estás querida? Como correu?
Ela ajeitou o corpo na cadeira inquieta e
desviou o olhar.
- Foi...
O empregado, um rapaz de rosto frágil e cabelo
comprido apertado numa trança, aproximou-se com a ementa por entre cumprimentos
na sua voz de eunuco.
- Não precisamos, não precisamos! -
exclamou o seu chefe afastando-o - É o habitual!
Mal o rapaz deu dois passos atrás, o homem
careca voltou a poisar os olhos sobre ela:
- Vá querida, conta-me como foi.
Ela respirou fundo, tentou organizar os
pensamentos e lembrar-se da entrevista daquela manhã. Parecia ter sido já há
tanto tempo atrás...
- Fiquei surpreendida...
- Como assim?
- Eles estão mesmo convictos de que
estão a salvar o país.
- Ao menos estão motivados,
sabes...
Ela interrompe-o:
- Não é isso chefe. Eles acham
mesmo que é empobrecendo o país que nos tornamos mais fortes.
- Está provado que em épocas de
crescimento a nossa dívida aumenta, porque as pessoas têm demasiado acesso ao
dinheiro e as importações não param de crescer devido ao consumo excessivo. O
que eles querem fazer é equilibrar a balança comercial.
Ela desviou o olhar concentrando-se no balcão.
O homem de cabelos encaracolados despira o casaco e contava uma qualquer
história saltitando e agitando os braços numa mímica extremamente exuberante.
Parecia um macaco.
- Chefe... - disse ela tentando
recordar ao que estava a responder - Você não acredita nisso...
- Claro que sim! Se baixarmos o
custo da mão-de-obra baixamos os custos de produção e tornamo-nos mais
competitivos. É assim que se aumentam as exportações do país.
Ela olhou-o desagradada:
- Veja a nossa indústria do
calçado... Que caminho é que eles seguiram? Baixaram os custos de produção?
Não! Aproveitaram os nossos jovens altamente qualificados para competir com
produtos de luxo. O valor que essas empresas acrescentam aos produtos aumentou
e com ele os lucros das vendas!
- É um exemplo, mas é um exemplo
único... É uma indústria própria com regras próprias... - continuou o seu chefe
calmamente, ostentando um sorriso condescendente que a começava a irritar.
- Contra quem é que vamos competir
em termos de baixos preços? Vamos conseguir competir com países do terceiro
mundo em que os direitos humanos não são respeitados? Como? Como chefe? Como?
Só se dermos aos nossos trabalhadores as mesmas condições miseráveis que esses
países oferecem... É isso que queremos?
- Isso não é assim tão simples.
Para cada produto existe uma escala de diferentes gamas, diferentes classes
alinhadas consoante os índices de qualidade e de preço. Não existem só os
extremos, existe uma escala inteira onde a nossa economia se pode encaixar.
- Não concordo chefe! Acho que se
trata tudo de ideologia. Fanatismo. Arrogância. Veja, eles estão a vender o nosso
país ao desbarato, a privatizar não só as empresas como os serviços do estado.
Estão a criar uma rede de monopólios e de rendas...
- Será que os privados não fazem um
melhor trabalho que o estado nessas áreas fundamentais? Será que a ideologia
privada orientada para o lucro não favorece os serviços públicos? Será que não
temos todo o interesse em entregarmos áreas fundamentais do país nas suas mãos?
Pensa um pouco. Os serviços passam a ser geridos como empresas e tornam-se mais
eficientes, é um serviço melhor e mais barato.
- Ò chefe! Quer que eu acredite que
um serviço público não pode ser bem gerido? Que é o facto de entregarmos
serviços vitais a privados que nos vai fazer poupar dinheiro? Então e quem paga
o lucro dessas empresas? Quem? É a pagar os lucros do privado que vamos ter
serviços melhores e mais eficientes? Mas quem é que acredita nisso?
« É sempre a mesma coisa, os três
pilares do estado - saúde, educação e justiça - não têm ninguém que os defenda.
Só quem os ataque! Por cada crítica à escola pública, há um privado a ganhar
alunos; por cada crítica ao sistema nacional de saúde, há um hospital privado a
receber novos clientes e por cada crítica ao sistema de justiça, há um cidadão
a deixar de acreditar nela e a entregar o poder aos tiranos.
O seu chefe perdera o sorriso o que a animou
internamente. O homem de cabelo encaracolado estava agora a fazer malabarismos
com os copos desenhando no ar elipses de vidro, sob o olhar da empregada
preocupada com a segurança da sua loiça.
- Vês algum serviço do estado bem
gerido? - perguntou o seu chefe procurando captar-lhe a concentração - Algum?
Sabes bem que não funcionam!
- Pois se calhar não funcionam.
Porque será? Sabe como é que são escolhidas as administrações? Pelo mérito das
pessoas? Pelas suas reconhecidas qualidades de gestão? Não! Claro que não!
Estão lá para dizer sim. Sim a tudo! São escolhidas de acordo com interesses
políticos, servem para pagar favores, para recompensar amigos. Essas pessoas
não são nomeadas para fazerem um bom trabalho, são nomeadas para fazerem aquilo
que o governo manda. Eles sabem que não estão lá pelo seu mérito... Ou fazem o
que lhes é pedido ou são postos na rua!
- Bem, bem... Isso já é teoria da
conspiração... - escusou-se o seu chefe endireitando-se na cadeira. Aquele
colarinho cor-de-rosa ficava-lhe extremamente mal.
O empregado que parecia um eunuco regressou em
passo receoso, equilibrando numa bandeja duas águas com gás e uma rodela de
limão, palhinha e sombrinha colorida. Eles permaneceram silenciosos enquanto
ele servia as bebidas, mas mal se afastou o seu chefe despiu o casaco,
pendurando-o nas costas da cadeira, alargou o nó da gravata e voltou a insistir:
- Então e a entrevista? A senhora
presidente? Conta-me tudo!
- Chefe, se você fosse um
empresário com recursos ilimitados em que tipo de serviços investiria? Em que é
que investem os países mais ricos do mundo? Pense bem... Iria investir em
coisas de que as pessoas fossem sempre precisar, serviços básicos,
matérias-primas, energia, abastecimento de água, saúde, educação... Tudo coisas
que as pessoas, por mais caro que seja, vão sempre pagar! Você quer que eu
acredite que todos estes serviços do nosso estado foram privatizados com os
melhores interesses? Pelo interesse do país? São monopólios de lucro garantido!
- Não digas isso querida, isso não
é verdade...
Ela desviou o olhar procurando mais uma vez o
homem de cabelo encaracolado. Já não se encontrava junto ao balcão... Por fim
descobriu-o junto à porta da rua convidando os seus colegas a saírem na sua
frente.
Retirou a palhinha e a sombrinha do copo e
bebeu um gole de água. Tinha um aroma adocicado que ela não conseguia
identificar.
O grupo de executivos já tinha abandonado o
restaurante praticamente na sua totalidade. Gritou:
- Isto é tudo encenado!
O homem careca deu um salto aterrando
estupefacto na cadeira:
- Encenado? Explica-me lá isso. - a
voz tremia-lhe.
O último dos engravatados tinha-se detido
junto à porta conversando animadamente com o homem de cabelo encaracolado.
Pelos gestos que estava a fazer parecia embriagado. Embriagado e certamente a
fazer uma representação do seu colega a correr alucinado de gravata a arder.
Ela respirou fundo aliviada e continuou:
- Politicamente só existe o que o
público sabe que existe. Sabe quem disse isto? Foi o homem que deu o nome a
toda uma dinastia de feiticeiros negros no mundo da literatura fantástica e nos
domesticou durante quarenta anos.
« Eles passaram o dia todo a
brincar comigo, chefe. A representar. É através de nós que o mundo os vê, é
através de nós que o público sabe o que se passa no país, é através de nós que
o público sabe o que é que existe.
« É por isso que nos tratam sempre
com um sorriso e uma vénia, porque esperam que nós papagueemos o que lhes
interessa que a opinião pública pense. Já viu o poder que é estar todos os dias
dentro de casa das pessoas a dizer-lhes o que devem pensar? É a única opção. É
a única opção. Não há alternativa... Passei o dia todo a ouvir isto...
O seu chefe sorriu, colocou a sua mão
arranhada sobre a mão dela que se encontrava inocentemente apoiada sobre a mesa.
O contacto provocou-lhe um arrepio desagradável. Tentou retirar a mão debaixo
da do seu chefe mas ele segurou-a com força apertando-lhe os dedos.
- Pareces uma principiante - disse
ele asperamente, a sua expressão havia mudado por completo - É assim mesmo que
as coisas funcionam. A tarefa de um político é vender as ideias que mais lhe
convêm.
Ela deu um esticão com o braço e retirou a mão
com força, soltando-se do seu chefe. Furiosa deu um murro na mesa derrubando um
dos copos.
O eunuco surgiu de imediato levantando o copo
e passando um paninho na mesa de forma a minorar os estragos do líquido
derramado sobre a toalha.
- A propaganda está sempre na base
de tudo... Simplificações e meias-verdades! - gemeu ela tentando conter a fúria
- Todos os grandes ditadores, foram exímios na gestão do pensamento dos seus
povos. Todas as tiranias funcionam na base da intimidação e da inevitabilidade.
« Cabe-nos a nós mediar essa
propaganda. Impedir que o público seja enganado! Eu quero-os destruir! Eu quero
contar a verdade!
- Calma! Calma! - cortou o homem
careca arriscando um tom firme mas apaziguador - A liberdade de expressão
funciona nos dois sentidos. Tu tens o direito de criticar os nossos
governantes, eles têm o direito de se defender e de promover as suas ideias.
Nós, enquanto jornalistas, temos o direito tanto de os criticar como de os
defender ou louvar. O nosso jornal tem toda a liberdade para seguir o rumo que
a direcção ditar. Seja ele o da crítica, o da neutralidade ou o do louvor. As
empresas têm o direito de apoiar os políticos que adoptam as medidas que mais
lhes são favoráveis, exactamente da mesma forma que uma pessoa vota em que
defende os seus interesses.
« Não podemos exigir a liberdade
para nós, e esquecermo-nos da liberdade dos outros, da liberdade que todos têm
de exprimir a opinião que muito bem entenderem.
« Podes escrever o que quiseres em
textos que sejam da tua exclusiva responsabilidade. Nos textos que assinas no
meu jornal, tens de respeitar aquela que é a nossa linha editorial, nenhum
jornalista assina um artigo por si próprio, sozinho, tem sempre muitas pessoas
atrás de si e, como tal, não pode monopolizar a liberdade de expressão de toda
a redacção!
« Ninguém, mesmo que pretenda ser
absolutamente isento, consegue transmitir a verdade de um acontecimento a
alguém. A verdade é infinita e, como tal, um jornalista tem sempre de escolher,
segundo o seu próprio critério, que parte da realidade vai ou não incluir na
notícia, o que é importante e o que não é. Quem vai entrevistar, o que vai
transcrever de entre todos os testemunhos que recolhe, que pormenores vai
referir e que pormenores pode omitir. O jornalismo é profundamente subjectivo,
por muito que ambicionemos o ideal da isenção e neutralidade.
« Somos todos seres humanos e o
natural é respondermos emocionalmente a todas as situações com que nos
deparamos. Estamos sempre prontos para assumir uma posição, uma atitude,
perante a realidade. Sabemos sempre dizer se gostamos ou não gostamos de
determinada coisa. Faz parte do nosso instinto de sobrevivência.
« A responsabilidade de apurar as
diferentes perspectivas com que a realidade pode ser abordada não é da
imprensa, mas sim do público. As pessoas é que são responsáveis por procurar o
volume de informação que considerarem necessário para se sentirem esclarecidas
em relação a cada acontecimento da nossa vida política.
- Porque devemos nós participar nesta
encenação? Qual é o interesse de fazer entrevistas em que entrevistado tem
acesso prévio às perguntas, em que o entrevistado tem alguém que lhe escreve as
respostas? Qual é o interesse desta farsa?
- Mas é mesmo assim que as coisas
funcionam! É natural que eles tenham as perguntas. Nem eles aceitariam a
entrevista de outra forma. É natural que alguém lhes preste apoio na redacção
dos discursos e na preparação das entrevistas... É o mundo em que vivemos.
Ela olhou para a entrada do restaurante. O
homem de cabelo encaracolado havia desaparecido.
Levantou-se de rompante, quase derrubando o
eunuco que lhe vinha trazer uma nova bebida.
- Não posso ficar! - atirou sem
conseguir suster as palavras.
Olhou-o fixamente tentando recuperar o
controlo. O homem careca olhava-a de novo estarrecido. O lábio edemaciado caído
estupidamente, os hematomas subitamente mais vivos. Continuou:
- Logo à noite entrego-lhe o
artigo. Faça o que entender...
Pegou na mala, que deixara caída junto à sua
cadeira, e afastou-se em direcção à saída sem voltar a olhar para trás,
imaginando o rosto deformado do seu chefe, profundamente trastornado, avaliando
por certo o método mais simples de a despedir.
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