Julgamento e indignação

 
 
Quão bons somos nós como juízes?
 
 
 Somos diariamente bombardeados por televisões, jornais, redes sociais, etc., com notícias que nos deixam indignados, contudo é importante levantar a questão sobre quanto desta indignação é um julgamento justo, e quanto é que não passa de uma resposta pavloviana.
 
 Neste sentido, antes de avaliar a nossa capacidade de emitir sentenças justas, começo por analisar a informação que nos permitirá ponderar a nossa posição antes de tomar uma decisão. 
 
 Toda a informação que nos chega sobre o que se passa no mundo é habitualmente processada previamente. Se é certo que podemos estar "no terreno" em certas situações e presenciar directamente os problemas, recolhendo as nossas próprias informações,  verdade é que a grande maioria do que sabemos sobre o que se passa no nosso país nos chega através de intermediários.
 
 Estes intermediários são tradicionalmente os jornais, a radio e as televisões, contudo nos últimos anos tornou-se paradigmático que esta informação nos chegasse também através das redes sociais, ou de plataformas de contacto directo como o WhatsApp.
 
 Nenhuma destas vias é por si só boa ou má, contudo apresentam entre si diferenças evidentes no que se refere à possibilidade de encontrar o contraponto à prespectiva apresentada em determinada notícia, que é muitas vezes a melhor forma de aferir a veracidade da informação que nos chega.
 
 Os algoritmos das redes sociais estão desenhados para nos apresentar as notícias que vão de encontro ao nosso histórico de navegação, excluindo facilmente o acesso a pontos de vista opostos aos que estamos habituados a contactar e dificultando a nossa capacidade de avaliar a informação que nos chega.
 
 As plataformas de contacto directo, geram habitualmente grupos fechados onde a circulação de opiniões divergentes não abunda, criando potencialmente tal como as redes sociais, zonas de isolamento da informação no seu todo.
 
 Adicionalmente, o facto de estarmos habituados a confiar nos meios tradicionais de informação, associado ao facto de lermos notícias partilhadas por pessoas em quem confiamos, leva-nos a descurar a verificação se uma determinada notícia é genuína ou apenas uma tentativa de manipulação.
 
 A maioria das partilhas de conteúdo que realizamos, não é precedida habitualmente pela verificação das respectivas fontes e da veracidade do seu conteúdo, o que nos torna a todos potenciais difusores de notícias falsas.
 
 A primeira questão é então porque é que alguém se lembraria de escrever notícias falsas, tendenciosas ou manipuladoras, no todo ou em parte, e se esta questão é exclusiva das redes sociais e das novas formas de divulgar informação ou se é algo que também se encontra presente nos meios de comunicação tradicional.
 
 Uma das citações de António Salazar mais conhecidas é "Em política, só existe o que o público sabe que existe." o que demonstra bem a importância que o controlo da informação tem para a obtenção e manutenção de poder, exemplificado nos inúmeros países onde actualmente existe censura ou imprensa de domínio estatal virada para a difusão de propaganda, mas também por exemplo nas tentativas de influência russa nas eleições e na vida política americana, de forma a defender os interesses da nação russa no exterior.
 
 Um outro exemplo do interesse político como motivação do controlo da informação, são a criação de grupos especializados na manipulação de opiniões nas redes sociais durante o governo Sócrates e as eleições que culminaram com a subida de Passos Coelho a primeiro ministro, em que grupos ligados ao PSD se especializaram em manipular as redes sociais de forma a que as reacções da população a determinada notícia fossem lidas num determinado sentido, quando na verdade a maioria dos comentários eram provenientes de perfis falsos, com o objectivo de provocar discussões e polémicas estéreis.
 
 Esta influência política sobre a informação, faz-se sentir também na cultura, onde por exemplo o facto de o estado chinês financiar as produções de Hollywood, bem como o seu licenciamento no enorme mercado chinês, tem condicionado os filmes realizados no sentido de que a China nunca seja representada de um modo menos positivo.   
 
 
 Para além das influências políticas directas, existem ainda as influências económicas e as influências políticas indirectas na informação que nos é apresentada.
 
 Tantos as redes sociais como os meios de comunicação tradicionais dependem de audiências, ou seja, dependem da capacidade que aquilo que nos apresentam tem de captar a nossa atenção. Neste sentido, o seu objectivo primordial pode não ser informar o público, mas sim captar a atenção do público o que em última análise influenciará a forma como determinada notícia nos é apresentada.
 
 Quanto mais dependente de audiências estiver um determinado meio de comunicação, maior será a probabilidade de as privilegiar em detrimento da qualidade da informação. Com o surgimento das redes sociais e de novos meios de difusão de informação gratuitos, os media tradicionais têm enfrentado dificuldades, o que tem significado reduzir pessoal e tentar maximizar a sua chegada ao publico com os menores custos possíveis, o que em última análise significa um sacrifício da qualidade da informação fornecida.
 
 Uma das estratégias mais comuns, adoptada em ambos - redes sociais e media tradicionais - é o apelar à nossa indignação. Tanto uns como outros optam frequentemente por apresentar as notícias sobre a prespectiva que mais polémica causará e que com maior probabilidade captará a nossa atenção. Esta manipulação pode atingir vários graus, desde uma pequena mudança de prespectiva com pequena corrupção da informação, até uma mudança radical em que a notícia só existe porque foi noticiada de determinada forma.
 
 Um exemplo desta completa manipulação para "forjar" notícias onde elas não existem, é o caso recente do juiz Neto de Moura.
 
 
 Esta polémica com o juiz Neto de Moura, prende-se com o facto de ele ter mandado retirar uma pulseira eletrónica a um agressor sexual, pulseira que havia sido colocada com o intuito de proteger a vítima.
 
 Existe muito a noticiar e a discutir sobre violência doméstica, parecendo mais do que claro que é necessário repensar as leis e a sua aplicação no que se refere a este tema, tendo sempre em conta que este é um tema em termos judiciais muito complexo já que habitualmente estamos a falar em prevenir crimes que ainda não aconteceram e não em julgar crimes que já tiveram lugar.
 
 Este é o ponto que torna a questão em termos judiciais tão complexa, o facto de - no caso de um homicídio - estarmos a falar em prevenção de um crime para o qual ainda não existe um culpado ou uma vítima, pelo que todos os indícios e todas as pequenas agressões prévias terem ser valorizadas e punidas nos termos da lei de uma forma que não se aplica noutros contextos.
 
 Contudo, nenhuma das notícias em torno de Neto de Moura e deste caso em concreto são sobre isto. Estas questões são demasiado complexas para vender ao público, pelo que aquilo que é possível vender com sucesso é a polémica.
 
 Sobre o caso em si não existe grande dúvida - a decisão de colocação de pulseira electrónica não havia sido justificada nos termos, pelo que o juiz Neto de Moura anulou a sua colocação, ficando a revisão desta decisão dependente da acção das restantes instâncias judiciais - mesmo que existisse dúvida, não conhecendo o processo seria sempre difícil condenar qualquer que fosse a decisão do juiz de forma racional.
 
 Contudo, explorando a resposta emocional do público à defesa de um agressor, extrapolando demagogicamente um exemplo concreto para toda a problemática da violência doméstica, é possível, como se tem visto, produzir um infindável rol de notícias e cativar o público com imenso sucesso.
 
 
 Existe um segundo aspecto neste caso que me ajudará a introduzir a segunda parte deste texto - a nossa real capacidade para emitir julgamentos justos - que se trata do facto de o juiz Neto de Moura ser uma personagem fácil de diabolizar.
 
 Neto de Moura cometeu algo que nenhum juiz deve jamais cometer, que é a mistura de um julgamento moral com um julgamento judicial. Ao ter anteriormente fundamentado parcialmente uma decisão judicial com o recurso a justificações morais, Neto de Moura descredibilizou a sua fundamentação judicial, tendo tido de enfrentar um processo disciplinar neste contexto.
 
 Não deixa de ser curioso que, após se descredibilizar ao misturar um julgamento moral com um julgamento judicial, venha agora a ser perseguido na comunicação social com o recurso à mesma mistura entre o que são argumentos morais e o que são argumentos judiciais, bem como da incapacidade de o público definir claramente quais de entre eles devem imperar num processo judicial.
 
 A esta mistura estre julgamento moral e julgamento judicial, junta-se frequentemente uma terceira componente que é a do julgamento político, compondo a tempestade perfeita entre julgamento e indignação.


 
 É José Sócrates culpado dos crimes de que é acusado no processo da "Operação Marquês"?
 
 Acredito que quando confrontados com esta pergunta cerca de 90% dos portugueses dirão que sim, que José Sócrates é culpado, contudo com o intuito de aferirmos o quão bem fundamentado se encontra este julgamento proponho as seguintes questões: De que crimes é José Sócrates acusado? Quais são as provas contra ele?

 Não tenho muito dúvidas que estas duas questões, tão simples como parecem, sejam o suficiente para revelar que a assumpção colectiva de culpa que realizamos em relação a José Sócrates seja baseada em pouco mais do que uma enorme confusão entre julgamento judicial, julgamento político e julgamento moral.

 A questão judicial depende de uma acusação concreta e de provas que impliquem o réu. Não basta dizer que uma pessoa é corrupta, é preciso dizer onde foi corrompida, com que motivação, bem como fundamentar esta acusação com provas concretas. Destes 90% de portuguesas que consideram José Sócrates culpado, quantos sabem especificamente de que é acusado e quais são as provas que enfrenta?

 Aquilo que os portugueses sabem, e que os leva a considerarem José Sócrates culpado, vem então de um julgamento muito diferente do julgamento judicial. Vem do julgamento moral - a relação com o amigo Carlos Santos Silva, a vida em Paris, o dinheiro emprestado - mas também do julgamento político dos tempos em que foi primeiro ministro.

 José Sócrates é para uma proporção importante da população portuguesa o culpado da crise política e financeira de 2010. É comum ouvir na comunicação social determinadas políticas classificadas como "socráticas", bem como o prognóstico de que tais políticas só nos podem conduzir novamente à ruína.

 Mesmo que tais afirmações fossem verdade (bastando pensar que existiu uma crise financeira mundial em 2008 e que em 2010 estávamos no auge da crise política e económica europeia cosequente, para que a culpabilização de José Sócrates por todos estes eventos pareça desde logo um pouco ridícula), nenhuma das políticas de José Sócrates tem qualquer ligação directa com o processo da "Operação Marquês", tal como, se todos os crimes de que é acusado fossem provados, é muito difícil relaciona-los com a crise de 2010 e com um real impacto para o país no seu todo.

 Todo o mediatismo em torno da "Operação Marquês" se tem baseado na exploração da polémica a ela associada, bem como da confusão da população entre os julgamentos moral, político e judicial.

 Exemplo disso são as entrevistas realizadas a José Sócrates em que realmente se tentou debater os crimes de que é acusado e existência de provas (e já há bastante tempo que todo o processo está livre do segredo de justiça), em que é notória uma fragilidade da acusação que contrasta com a total certeza da população de que José Sócrates é culpado.     


 Eu não sei se José Sócrates é culpado ou não, contudo a forma como este caso foi abordado em termos mediáticos preocupa-me dada a gravidade das consequências que já teve. Primeiro porque alguém que pode estar inocente - até ser julgado e condenado é essa a realidade: pode estar inocente - tem já a sua vida arruinada em termos políticos independentemente de qual venha ser o desfecho do processo.

 Em segundo lugar, e mais importante do que o primeiro, a forma como este caso foi conduzido tem tido implicações na vida política nacional e nas políticas que têm vindo a ser seguidas, sendo José Sócrates arma de arremesso comum na vida política nacional. Políticas a ele associadas são condenadas independentemente de serem boas ou más para o país, tal como quem se lhe opõe é valorizado independentemente das suas verdadeiras competências.   

 Não podemos dizer que é o caso no nosso país, mas não deixam de existir semelhanças com o Brasil em que Dilma Rousseff e Lula da Silva foram afastados da vida política em processos judiciais e de destituição extremamente controversos servindo aparentes interesses políticos.

 É por isto que na justiça existe a inversão do ónus da prova, sendo o sistema judicial obrigado a provar que alguém é culpado sem sombra de dúvida, por oposição à necessidade do acusado de provar que é inocente. Tal existe porque nada é mais danoso para a confiança que temos na justiça do que a prisão de um inocente.

 O problema da confusão que existe entre os julgamentos moral, político e judicial é mesmo este, é que por um lado redes sociais e media a vão explorar e expandir ao máximo, uma vez que a nossa indignação lhes garante audiências, e por outro lado, como se trata de um julgamento sem leis e sem princípios, nada nos garante que não estejamos a condenar pessoas inocentes, ou até mesmo a ser manipulados de forma a servir interesses obscuros, decidindo, sem qualquer prova, que uma pessoa é culpada de um determinado crime.




          

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